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segunda-feira, 8 de julho de 2019

CONHECENDO O TIBETE - Nicéas R. Zanchett

                Desde os tempos do rei Ptolomeu do Egito, tinham-se vagas notícias de terras distantes e inacessíveis no coração do  continente asiático. Algumas noções mais pormenorizadas surgiram ainda na Idade Média, graças a alguns europeus, que viajaram através da Mongólia, entre eles o veneziano Marco Polo, que mencionou o Tibete em seu livro"O Milhão". Também podemos citar João da Pian del Carpine, um dos primeiros companheiros de São Francisco de Assis e fecundíssimo pregador, que foi enviado às terras asiáticas para ali difundir a religião de Cristo e chegou até á corte Grã-Cã dos Tártaros, onde teve oportunidade de conhecer, embora superficialmente, a região tibetana. Mas, o primeiro europeu que penetrou no interior do Tibete foi Odorico de Pordenone, lá pelo ano de 1300. Desde essa época, somente no século XVII, e exatamente no ano de 1631, os europeus, (jesuítas e franciscanos) puderam penetrar novamente no Tibete, naquele interminável planalto de cerca de 2.600 quilômetros de comprimento por 1.300 de largura.
                 Circundado e sulcado por cadeias de montanhas orientadas na direção dos paralelos terrestres, imensas rugas da crosta terrestre, encimadas por geleiras colossais, das quais a mais comprida, é a de Siacen que mede nada menos que 75 quilômetros, no coração asiático, mais  precisamente no norte da península indiana. Ali estende-se longinquamente a mais vertiginosa cadeia de montanhas do mundo, o Himalaia, que se eleva a quase 9.000 metros com o pico do Everest (8.860 m), somente há poucos anos atingido, pela primeira vez, por criaturas humanas. Além daquela imensa cadeia montanhosa, encontra-se o mais imponente sistema de terras altas do mundo, ou seja, o planalto do tibete, que se limita com a Índia, China e Rússia, e cuja elevação média beira os 5.000 metros acima do nível do mar. 
                O nome Tibete parece que deriva do árabe Tibat ou Tolbat, proveniente, por sua vez, da antiga denominação chinesa  Tu-pat ou Tu-pang. No entanto, os tibetanos chamam seu país de Bod. 
                Chamado poeticamente pelos indígenas como "país das neves" e também conhecido como Telhado do Mundo, ou seja, o limite o limite entre o passageiro e o eterno, entre o humano e o sobrenatural; e realmente emana daquela imponente paisagem, que supera toda e qualquer imaginação de solenidade e majestosa grandeza. Um lugar onde os peregrinos religiosos tem o sentimento de proximidade com Deus, de uma passagem da caduca fraqueza humana para o eterno poder do criador. 
                No planalto, assolado por tempestades e percorrido por gélidos ventos, a temperatura chega, no inverno, a té a 40 graus abaixo de zero, embora se conservando, em média, nessa estação, a 15 graus abaixo de zero. Nas estações mais quentes, atinge, excepcionalmente, 25 graus acima de zero, mas, ao cair da noite, quase sempre cai novamente a zero. 
              Uma ralíssima vegetação brota nesse terreno rochoso ou coberto de calhaus, devido à desagregação de algumas rochas; e somente em certas zonas protegidas da ventania, por mérito das altas montanhas marginais, uma ou outra planta pode medrar e viver. A falta da necessária irrigação contribui para tornar mais difícil a vida dos vegetais, ainda mais porque os numerosos lagos que se acham na região são todos de água salgada e muitas das nascentes constituídas de água quente, o que é muito curioso. Apesar desses obstáculos, nessa área de 1.204.320 quilômetros quadrados, que se diria não poder abrigar as débeis criaturas humanas, vive uma população de cerca de oito milhões, que uma atávica adaptação às condições mesológicas ou um singular e corajoso esforço de ambientação torna-as alegres e serenas, mesmo em meio a provações e às lutas impostas pela natureza hostil.  Onde as condições de clima se demonstram melhores, e relativamente mais propícias, surgiram aldeias e pequenas cidades, a população se tornou mais sedentária e entrega-se ao cultivo de dificultosas plantações e pequenas hortas. Nos vales protegidos das terríveis monções e relativamente cálidos, conseguem-se  obter até árvores frutíferas, tais como maçãs, nozes, pêssegos e damascos. Entre os cereais, destaca-se a cevada, mas também é cultivado o fermento, o trigo sarraceno e o milho. Tudo isso parece inacreditável num local tão difícil. 
               Um quinto da população, ao invés, vive em estado nômade, exercitando o pastoreio; mas reina, ali, uma condição de notável penúria, um nível muito baixo de vida, e as regras da higiene são quase inexistentes. 
             A população é do tipo mongólico, possui tez morena, mais clara sobre o tórax. São homens pequenos, de cabelos negros, rígidos e retos, olhos também negros; somente em alguns casos parecem estranhos, mas que se encontram apenas nos anciões, as pupilas possuem uma cor cinza-esverdeado. Uma barba muito rala ornamenta-lhes os rostos, sempre risonhos, e cabeleira igualmente pouco abundante, e usada comprida, também pelos homens, que a prendem em rabicho, sobre a nuca. As mulheres, ao contrário, separam os cabelos em número infinito de tranças, que prendem depois ao "pegu", espécie de gancho-suporte, grande arco enfeitado de corais, turquesas e, nas mais ricas, com pérolas. Trata-se de amplo e complicado ornamento, que constitui o objeto mais singular de atavio feminino e cuja riqueza é completada pelos anéis, brincos, quase sempre formados de um aro de ouro ou de prata, tendo ao centro uma turquesa. Os homens também usam brincos, ou melhor, um só brinco, precisamente no lóbulo da orelha esquerda. 
                O ouro e a prata não são escassos na região, mas são extraídos ainda por processos rudimentares, de acordo com as possibilidades de um povo cuja natureza de terreno e o isolamento por este provocado deixam-nos ainda bem para trás, na escala da civilização, ainda que os recursos naturais pudessem, ao invés, torná-los mais ricos para gozo de bem-estar. 
            E não é somente o homem que, no Tibete, luta contra as asperezas e as intempéries. Muitas variedades de animais lhe compartilham a dura vida. Alguns mais úteis, outros menos. inúmeros realmente lhes são nocivos como, por exemplo, o tigre que, embora apresente vários exemplares, acrescenta a insídia de sua ferocidade àquelas já numerosíssimas que possui e que exigem tanto cuidado, quanto ao clima, as avalanchas, as tempestades. Menos feroz, e mais numeroso do os tigres, outro felino habita as desertas planícies do Tibete; é o lince, animal de porte regular, com espesso pelo acinzentado e manchas negras; e, ainda, veados de topete, carneiros selvagens, gazelas, antílopes e macacos. Alguns animais são realmente úteis aos tibetanos, como o almiscareiro (moschus muschiferus), espécie de ruminante de um metro de comprimento e meio de altura, que vive em grandes altitudes e fornece, em seus exemplares masculinos, uma substância odorosa, o "almíscar", que os tibetanos exportam. Há, ainda, os minúsculos cavalos, chamados pones, conhecidos em todo o mundo, habilíssimos em grimpar pelos íngremes atalhos, onde, sem seu auxílio, o homem jamais poderia passar. Montados nesses cavalinhos, os Tibetanos disputam suas partidas de polo, esporte hoje tornado célebre e praticado em toda parte. 
               Realmente providencial para os habitantes do Tibete é o iaque, espécie de boi negro e anão, que vive tanto no estado selvagem como doméstico, e tão útil que seu próprio excremento é aproveitado como combustível, após seco. Também este é animal de grandes altitudes, pois, na verdade, não é encontrado nunca abaixo de dois mil metros e oferece, aos Tibetanos, alimento, como seu leite e carne, agasalho, com a lã tecida com seu espesso pelo, e habitação, porque as tendas dos nômades são feitas justamente com peles desse animal. É aproveitado, ainda, no trabalho, porque se adapta docilmente a puxar arado; serve para carga, porque carrega as mercadorias que as lentas e intermináveis caravanas transportam, duas vezes por ano, até aos mercados limítrofes da China e serve, outrossim, de cavalgadura paciente e robusta. 
               As caravanas tibetanas se enriquecem, porém, de mais outros animais de carga, não usados em outros climas para tal fim. São os carneiros que, conduzindo pequenas cangalhas, transportam o sal mineral, de que é riquíssimo o planalto, até aos mercados chineses, onde serão tosquiados, e sua lã logo vendida, ali mesmo. Em troca dos produtos que trouxeram de seu gélido país, os Tibetanos adquirem, nesses mercados, seda, tabaco, armas, e diversas bugigangas. A simplicidade e escassez da sua alimentação (carne de iaque e carneiro, farinha de cevada, de fermento ou de milho, simplesmente embebida de água, é compensada pelos Tibetanos por uma quantidade notável, até dez por dia, de taças de chá, que é uma espécie de monopólio, mas não um chá como o que estamos habituados a tomar; é uma bebida, ao invés, extraída de longa fervura de folhas finamente trituradas e à qual ajuntam bastante manteiga e sal. É talvez desta mistura que os Tibetanos auferem a energia necessária para viver e trabalhar num clima tão hostil. Ou talvez sejam auxiliados pelo "cian", licor obtido da fermentação de cevada e pouco alcoólico, do qual são gulosíssimos. 
               A uniformidade dos trajes entre homens e mulheres deriva, quiçá, da necessidade de bem se protegerem dos rigores do frio, necessidade que os faz deixar de lado qualquer preocupação de ordem estética. Nos "ciuba", usados pelas mulheres, o longo casaco de lã bruta, vermelho escuro, sua rusticidade está suavizada por desenhos tecidos em cruz, de vários matizes. Uma faixa de lã ou de seda lhes cinge a cintura e quase sempre de sob os casacos despontam as calças, meio compridas, tanto para os homens como para as mulheres. As altas botas, de couro de iaque ou de tela escarlate, apresentam, às vezes, a singularidade de dividir os vários dedos dos pés, assim como as nossas luvas separam os das mãos. Os chapéus masculinos são uma espécie de gorro, mas quase sempre enriquecidos, aos lados, com duas grandes abas, que são baixadas quando o gelo se demonstra muito forte. 
              Nos cumes mais altos e inacessíveis, sobre as mais resplandescentes geleiras, os Tibetanos situaram a sede de suas divindades, seja atualmente, quando professam o lamaísmo, religião muito semelhante ao budismo, e deste derivada, seja quando, em séculos distantes, professavam a religião bonpo. Em cada passagem, é crença que ali seja a morada de um espírito protetor) os caravaneiros deixam, como agradecimento, farrapos de roupa ou pedras, e recitam fórmulas de preces. Segundo a tradição religiosa, o centro do mundo está situado exatamente no monte Kailasa, de cerca de 7.000 metros de altura, e considerado, pelos Tibetanos, como a mais alta manifestação divina. Eles o denominam Pilar do Céu ou Joia de Gelo. 
               Nos templos estão guardado muitos ídolos preciosíssimos, que representam as inúmeras divindades e os espíritos protetores. Diante deles, os Tibetanos recitam fórmulas e preces. Cumbum, templo de Chianzé, com 100 mil imagens. A ciclópica construção, de maravilhosa arquitetura, está enfeitada por belas e vivazes pinturas. 
                  No Tibete, pontificam a superstição e o fanatismo religioso, mantidos sempre vivos pelos feiticeiros, que deles auferem grandes vantagens. Alguns feiticeiros sempre dançam disfarçados com horríveis e enormes máscaras que muito impressionam os fiéis.
                Cada ano, caravanas intermináveis giram vagarosamente pela base do monte, por uma vereda natural, que parece cavada para isso, para a lenta marcha dos peregrinos, que avançam rezando. Mas é uma estranha maneira de orar, essa dos Tibetanos. Muitas vezes, eles se contentam em confiar suas orações, escritas em papel, a certos cilindros, a que chamam moinhos das rezas, que são girados a mão. As palavras da oração, ao se desenrolarem os rolos, sobem ao céu, sem que o crente tenha sequer o trabalho de ler as fórmulas. Algumas orações estão escritas em folhas de papel presas a altos cajados, fincados nas proximidades das casas, de modo que o vento, fazendo tremular as bandeirolas, obtém o fim desejado, ou seja, expulsar os espíritos adversos. Não é este, porém, no Tibete, um modo lícito de aproximar-se das divindades, porque, o verdadeiro, o empregam amplamente  os próprios lamas, os sacerdotes de cabeça completamente rapada. 
                 O título de lama significa mestre e modelo de santidade, mas é usado, no Tibete, por qualquer sacerdote. Grande é o número desses lamas, pois toda família tibetana ambiciona ter um, em seus conventos, que são frequentemente enriquecidos com pintura antigas e preciosos manuscritos. Há lamas de duas diferentes seitas, aqueles de gorro amarelo e aqueles de gorro vermelho. Os "amarelos", aos quais pertence o Gã Lama, (Dalai Lama) ou chefe supremo da religião, são os prosélitos de uma reforma assaz recente. os "vermelhos", ao invés, são os adeptos da tradição antiga. Mas, como os Tibetanos acreditam na reencarnação das almas, quando morre o Grã Lama, vão logo em busca de uma criança nascida no mesmo instante em que ocorreu o passamento, e, se o recém-nascido corresponde a certos outros requisitos e sinais desejados, é logo levado para a cidade santa, Lassa, que é a capital política e espiritual do Tibete, e criado naquele grandioso convento, onde o adoram como uma divindade viva. E ele se torna, então, para toda a vida, o chefe supremo do Tibete, embora o povo não possa subtrair-se à influência e domínio dos Chineses. 
              Superstição e fatalismo tornam vantajosa a posição dos feiticeiros, que são consultados, sempre, em qualquer ocasião. Nos casamentos, para saber se o destino dos noivos é reciprocamente conveniente; nas enfermidades, para saber se o doente se restabelecerá. E quando o parecer do feiticeiro é desfavorável, o doente é entregue, com indiferença, ao seu destino. Caso morra, sendo rico, é cremado em cerimônia, mas se for pobre, e não pode pagar o luxo de uma fogueira, seu corpo é entregue, para alimento dos animais selvagens que abundam nas redondezas dos cemitérios. 
               Misto de ingênuas superstições e de adoração ao eterno príncipe criador, é o lamaísmo que comporta danças de lamas, disfarçados nas já mencionadas horríveis máscaras e, ao mesmo tempo surgem também como ioques, repletos de misterioso poder, dominando a vida material; poder ante o qual ficamos perplexos e espantados, só em pensar nesse ascético e espiritual recolhimento, que domina o espírito quase infantil de certas crenças realmente bárbaras e absurdas. Basta imaginar que, entre os Tibetanos, mesmo estando em vigor a monogamia e a poligamia, regra que impõe à mulher casada a obrigação de viver não só com o homem que a desposou, mas igualmente com todos os irmãos dele. 
                Rico e belíssimo é o convento, que surge em Lassa, cidade de cerca de cem mil habitantes, em sua maioria lamas; mas existem, ainda, no Tibete, outros templos de maravilhosa arquitetura que, infelizmente estão em ruínas devido à incúria e abandono, como é o caso do templo de  Cumbum (o nome quer dizer literalmente templo das 100 mil imagens; sua ciclópica construção recorda em seu estilo os cumes e a projeção das montanhas para o céu, em suas majestosas agulhas. No entanto, os mosteiros não são as únicas construções religiosas tibetanas. Nuito menores, mas também muito mais numerosos~são os ciorten, que coservam relíquias e livros sagrados. Junto ao templo de Toling, contam-se centenas e oito deles, que é o número simbólico para o lamaísmo. 
                    Também as habitações estão encastoadas nos íngremes declives, seguindo e, juntas, desafiando o ríspido flanco das montanhas. O material que forma as casas consta de blocos de barro, misturado a ramos (pau-a-pique) secados ao sol; as janelas acham-se situadas bem ao alto, quase junto ao telhado, que é todo circundado de uma barra vermelha contra o mau olhado, assim como enfeitados de vermelho, de trapos de lã, se encontram os arados puchados pelos iaques. 

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