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quarta-feira, 17 de julho de 2019

A LEI, OS NEGÓCIOS E O CÓDIGO DE HAMURÁBI

                   A Babilônia tinha um bem desenvolvido sistema de finanças. Não tinham moeda cunhada, mas ainda antes de Hamurábi usavam, além do trigo e da cevada, lingotes de ouro e prata como padrões de valor e instrumentos de troca. O metal era pesado em cada transação. A menor unidade monetária consistia no shekel - meia onça de prata no valor de dois e meio a cinco dólares de hoje. Empréstimos eram feitos em mercadorias em metal como garantia e a altos juros, fixados pelo estado em 20% anuais para aqueles cuja garantia eram os metais e 33% para os em mercadorias; Cabia aos escribas a tarefa de enganar a lei e conseguir taxas mais altas. Não havia bancos; mas cestas famílias poderosas, entretanto, dedicavam-se tradicionalmente ao negócio de emprestar dinheiro; também negociavam com terras e empresas industriais; e as pessoas que tinham fundos em depósito com tal gente pagavam suas obrigações por meio de saques escritos. Também os sacerdotes emprestavam dinheiro, sobretudo para custeio da lavoura. Ocasionalmente a lei tomava o partido do devedor; se um camponês hipotecava suas terras e as via sem colheita por força de temporais ou "outro ato de Deus", não era obrigado a pagar os juros daquele ano. Mas quase sempre formulavam-se as leis com os olhos na propriedade, para garanti-la da melhor maneira; era princípio estabelecido na Babilônia que ninguém tinha o direito de tomar dinheiro sem por ele responsabilizar-se de maneira absoluta; o credor, portanto, podia escravizar o devedor, ou o seu filho, até que o débito fosse saldado, mas não por mais de três anos. A praga da usura assolou a indústria da Babilônia, como nos acontece hoje. 
           Era uma civilização essencialmente comercial. A maior parte dos documentos sobreviventes é de caráter comercial - vendas, empréstimos, contratos, sociedades, comissões, permutas, doações e legados, acordos, notas promissórias, etc. Nestas tabletas encontramos abundante prova da riqueza babilônica e um certo espírito materialista que, como em civilizações posteriores, conciliava a ganância com a piedade. Vemos na literatura muitos sinais de vida m ocupada e prospera, mas também, a cada passo, reminiscências de escravidão abaixo de todas as culturas. Os mais interessantes contratos de venda são os relacionados a escravos. Eram recrutados entre os prisioneiros de guerra, ou os apresados pelos beduínos errantes em suas incursões pelos estados próximos, e também produzidos pelo entusiasmo reprodutor dos próprios escravos. A maior parte do trabalho físico urbano era feito por eles, e também o serviço doméstico. As escravas viviam completamente à mercê de seus compradores, e tinham de os sustentar; estava subentendido que o senhor podia extrair delas a prole que quisesse, e as que não eram tratadas assim se sentiam desonradas. O escravo, com tudo que dele fosse, pertencia ao senhor; podia ser vendido ou empenhado por dívida; podia ser morto, se o senhor o achasse conveniente; se fugia, a ninguém era dado acoitá-lo, e havia recompensa para quem o capturasse. Do mesmo modo que o camponês livre, era o escravo sujeito ao serviço militar e aos trabalhos públicos forçados.  Em compensação o senhor pagava-lhe a conta do médico e conservava-o na doença, no desemprego e na velhice. Podia o escravo casar-se com mulher livre e nesse caso seus filhos nasciam livres; e ao morrer,  metade de suas propriedades iam para a sua família.  Podia ser posto em negócio autônomo, recebendo parte dos lucros, com os quais lhe era permitido resgatar-se; ou o senhor o alforriava por motivos de gratidão. Bem poucos tinham tal sorte. A grande massa se consolava com a reprodução, até se tornarem mais numerosos que os livres. Uma grande classe escrava movia-se subterraneamente e em ascensão, nos alicerces do estado babilônico.
                   Tal sociedade, sem dúvida, nunca cogitou alguma espécie de democracia; seu caráter econômico impunha uma monarquia sustentada pela riqueza mercantil e pelo privilégio feudal, e protegida por uma judiciosa distribuição da violência da lei. A aristocracia territorial, gradualmente deslocava pela plutocracia comercial, ajudou a manter o controle da sociedade e serviu como intermediaria entre o povo e o rei. O rei transmitia o trono a qualquer dos seus filhos, de modo que todos se consideravam pretendentes e mantinham claques de sectários empenhados em seu acesso. Dentro dos limites deste governo arbitrário a administração era conduzida pelos senhores e prepostos nomeados pelo rei. Tais homens recebiam conselho  e eram fiscalizados por assembleias provinciais de velhos ou notáveis, que procuravam manter, mesmo sob a dominação assíria, uma orgulhosa autonomia local. 
                  Cada administrador, e comumente o próprio soberano, reconhecia a autoridade do grande corpo de leis que lhes fora dado por Hamurábi e que, através de quinze séculos, apesar das mudanças, se manteve nas linhas essenciais.  O desenvolvimento legal era da sanção sobrenatural para a secular, da severidade para a leniência, e dos castigos corporais para as multas. Nos primeiros tempos esteve em uso o apelo aos deuses por meio do ordálio. O homem acusado de feitiçaria ou a mulher acusada de adultério tinham de lançar-se ao rio; se se salvavam, eram inocentes, e os deuses se punham sempre do lado dos bons nadadores. Se a mulher emergia viva, era inocente; se o "feiticeiro"morria afogado, o acusador herdava os seus bens; em caso reverso, era ele quem recebia os bens do acusador. Os primeiros juízes foram os "sacerdotes", e até o fim da história babilônica os tribunais se reuniam nos templos; mas já nos dias de Hamurábi se haviam tornado seculares e só responsáveis perante o governo.
               A penalidade começou com a Lex-talionis - ou a lei da equivalente retaliação. Se um homem quebrava um dente ou uma perna de outro, também lhe quebravam o mesmo dente e a mesma perna. Se uma casa saia e matava o comprador, o arquiteto tinha de morrer; se o acidente matava o filho do comprador, o filho do arquiteto tinha de morrer; se um homem ofendia uma rapariga ou a matava, sua filha tinha de passar pelo mesmo. Gradualmente essas punições foram sendo substituídas por multas e pagamentos de danos; um pagamento em dinheiro liberava o culpado da pena de talião. Assim, um olho podia ser esmurrado por sessenta sikels de prata, e o de um escravo pela metade disso. Porque as penas variavam não só com a gravidade do delito como ainda com a importância do ofensor e da vítima. Um membro da aristocracia era sujeito a penas mais severas do que as recaídas sobre o homem do povo, mas a ofensa a um aristocrata custava muito caro. O plebeu que feria outro plebeu pagava dez sikels; a mesma ofensa num nobre custava-lhe seus vezes mais. Disso passou a lei às bárbaras penas de amputação e morte. O filho que batia no pai tinha as mãos cortadas; o doutor cujo doente morria ou perdia um olho na operação, tinha os dedos cortados; a ama que substituía uma criança por outra,  perdia os seios. A morte era a pena para grande número de crimes: violência carnal, rapto, banditismo, roubo, incesto, morte do marido pela mulher para casar-se com outro, abertura da taverna, ou mesmo a entrada de uma sacerdotisa em taverna, acoitamento de escravo fugitivo, covardia nas batalhas, malfeitoria nos cargos, desleixo e esbanjamento caseiro, etc. Com esses bárbaros processos, através de milhares de anos, aquelas tradições hábitos de ordem e continência foram estabelecidos de modo a se tornarem base inconsciente da civilização. 
                 Dentro de certos limites o estado regulava os preços, salários e honorários. O que o médico podia cobrar estava previsto na lei; e no código de Hamurábi foram fixados salários para construtores, alfaiates, pedreiros, carpinteiros, barqueiros, pastores e trabalhadores agrícolas. Os filhos herdavam, não a viúva; esta recebia o seu dote e ficava na chefia do lar enquanto vivesse. Não existia o direito de primogenitura; os filhos herdavam com igualdade, e deste modo os grandes domínios  logo se subdividiam, o que embaraçava o acúmulo da riqueza. A propriedade privada em terras e bens era assegurada pelo código. 
               Não encontramos sinais de advogados na babilônia; os "padres" serviam como notários e os escribas como redatores de tudo, madrigais ou testamentos. O queixoso defendi-ase a si mesmo, sem nenhum luxo técnico. Nada de estímulo às demandas; o primeiros artigo do código reza com muita simplicidade: "Se um homem acusa outro de crime capital e não o prova, o acusador receberá a morte". Há sinais de suborno e da manipulação de testemunhas. Uma côrte de apelação, formada pelos "Juízes do Rei ", tinha assento na cidade; a decisão suprema cabia ao rei. Nada existe no código sobre os direitos dos particulares contra o estado; isso iria ser uma inovação européia. Mas os artigos 22 e 24 asseguravam proteção econômica. "Se um homem pratica banditismo e é capturado, que seja morto.; Se não é capturado, o prejudicado pode, na presença de "deus", declarar a sua perda, e a cidade e o governador, dentro de cuja jurisdição o fato se deu, o indenizarão da perda. Se houver perda de vida, a cidade e o governador pagarão uma mina aos herdeiros". Que cidade moderna se sente bem governada a ponto de reembolsar as vítimas da negligência publica? Progrediriam as leis desde o tempo de Hamurábi ou apenas se multiplicaram? 

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