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quinta-feira, 18 de outubro de 2018

A INFÂNCIA DE ABRAHAM LINCOLN - Por ele mesmo.

           

  Foi escrito pelo próprio Abraham Lincoln

                 "Nasci em 12 de fevereiro de 1809, perto de onde é hoje Hogginsville (Hodgenville), em Kentucky. Meus pais eram ambos da Virgínia. Minha mãe, que morreu quando eu tinha dez anos, era de uma família chamada Hanks. Meu avô, Abraham Lincoln, veio da Virgínia para Kentucky  em 1781 ou 82. Um ano ou dois mais tarde, ele foi morto pelos índios, quando tentava organizar uma fazenda na floresta. Meu pai, na ocasião da morte de meu avô, não tinha mais que seis anos e cresceu sem instrução nenhuma. Mesmo na infância, foi um trabalhador ambulante, que nunca aprendeu  escrever mais que o próprio nome. 
                 1813. Thomas Lincoln arrenda uma fazenda em Knob Creek, Kentucky. Deste lugar eu me lembro muito bem. Minha mais remota recordação é daí. 
              1814. Antes de deixar Kentucky, eu e minha irmã fomos enviados, por períodos curtos, à escola de ABC. 
             1815. Com armas inofensivas - simples paus de nogueira - Austin Gallaher e eu tínhamos estado brincando e caçando coelhos nos bosques. Depois de algumas horas de vigoroso exercício físico, tínhamos parado para descansar. Logo atirei fora o meu chapéu, trepei numa árvore e fiquei descansando confortavelmente numa forquilha de dois ramos. 
                  Embaixo, estendido na grama, estava Austin, aparentemente adormecido. A seu lado, um boné de boca para cima. No bolso de meu colete, eu tinha uma fruta que encontrara pouco antes. O pensamento que, repentinamente, me ocorreu foi de que seria engraçado deixá-lo cair dentro do boné de Austin. 
                   A fruta estava tão madura e mole que eu, com dificuldade, consegui retirá-la inteira de meu bolso. Fazendo cuidadosa pontaria, deixei-a cair. Tinha calculado muito bem, pois acertei no meio do boné e vi pedaços de fruta mole e amarela salpicarem em todas as direções. Fiz uma pausa para observar o resultado, convencido de que Austin ficaria zangado, mas, estranho como pareça, o que eu tinha feito para irritá-lo não surtira efeito. 
                 Desci da árvore logo depois. Imaginem a minha surpresa: quando alcancei o chão compreendi que, em vez de dormir, Austin estivera na realidade acordado. Enquanto eu trepara na árvore, ele havia habilmente trocado os bonés, substituindo o dele pelo meu. Assim, em vez de aborrecê-lo como tinha pretendido, eu havia simplesmente sujado o meu próprio boné. 
                 1816. Nossa fazenda era composta de três campos que se estendiam pelo vale, cercado por altas colinas e profundos desfiladeiros. Algumas vezes, quando batia uma chuva forte nas colinas, a água invadia os desfiladeiros e estendia-se pela fazenda. A última coisa que me lembro de ter feito numa tarde de sábado. Os outros meninos plantaram milho no que chamávamos "o campo grande", pois tinha sete acres, e eu espalhara sementes de abóbora. Eu plantara duas sementes em fileiras alternadas, um montinho sim, outro não. Na manhã do domingo seguinte, veio uma grande chuva das colinas. No vale não choveu uma gota, mas a água, vinda através das gargantas, lavou o solo, o milho, as sementes de abóbora e todo o campo. 
               Lembro-me de nossa vida no Kentucky; a choupana, a maneira difícil de viver, a venda de nossas propriedades e a viagem que empreendi com meu pai e minha mãe para o sul de Indiana. Fomos para o que é hoje Spencer Country, em Indiana, quando eu tinha oito anos.
                 Outono de 1816.  Thomas Lincoln e sua família estabelecem-se em uma terra agreste perto de Pigeon Creek, não longe de Rockport, em Indiana. Estabelecemo-nos em uma floresta virgem e a abertura de uma clareira foi a grande tarefa a enfrentar. Eu era desenvolvido para a minha idade e logo me puseram um machado nas mãos. Desde esse tempo até meus vinte e três anos, estive constantemente manejando este utilíssimo instrumento. 
               Fevereiro de 1817. Nosso lar ficava numa região bravia, com muitos ursos e outros animais ferozes ainda pelas selvas. Aí comecei cedo a caçar, o que jamais soube fazer com perfeição. Alguns dias antes de fazer nove anos, na ausência de meu pai, um bando de perus selvagens aproximou-se de nossa cabana de madeira. Eu estava em pé, dentro, e com uma espingarda atirei através de uma fenda, matando um deles. Desde então nunca mais puxei o gatilho para coisa mais importante.  
                 Aqueles tempos de início, em Indiana, foram bem difíceis. Tivemos de construir a cabana e limpar o terreno para as colheitas. Mas, logo depois, conseguimos um conforto razoável. 
              5 de outubro de 1818. Falecera minha mãe.
               1819.  Levei um coice de cavalo e estive aparentemente morto por algum tempo. 
              2 de dezembro. Meu pai casou-se com a Sra. Sally Johnston, viúva com três filhos, de Elizabethtown, em Kentucky. Ela foi uma boa e carinhosa mãe para mim. 
              1820.  Existiam algumas escolas, pelo menos, tinham esse nome, mas para as quais se exigia dos professores que soubessem ler, escrever e calcular até regra de três. Se um desocupado, que tivesse fama de saber latim, aparecesse na vizinhança, seria olhado como feiticeiro. Frequentei a escola elementar por pouco tempo.  Agora acho que todo o meu período escolar não chegou a um ano. 
extraído de um caderno > Abraham Lincoln, a pena manuseado, -   Será bom, mas só Deus sabe quando.
             1821 (?). Entre minhas mais remotas lembranças, recordo-me como, ainda bem criança, costumava ficar irritado, quando alguém falava comigo de um modo que eu não pudesse entender. Vejo-me indo para o quarto, depois de ouvir a conversa dos vizinhos com meu pai, uma tarde. Devo ter gasto grande parte da noite tentando compreender a exata significação do que tinham dito. 
                Quando me acontecia começar a buscar uma ideia, eu não podia dormir enquanto não a achasse. E quando pensava que a tinha obtido, não ficava satisfeito até que a tivesse repetido muitas vezes. Enquanto pensava, tinha que expressá-la em linguagem suficientemente simples para qualquer menino, dentre os meus conhecidos, poder entendê-la. 
                 Um dia, uma carroça quebrou-se perto de nós. Nela estavam uma senhora, duas crianças e um homem. Enquanto eles ali estiveram, cozinharam em nossa casa. A senhora tinha livros e lia histórias para nós. Tomei-me de grande afeição por uma das meninas e quando eles se foram pensei nelas com grande saudades.
               Um dia, quando eu estava sem ter o que fazer, escrevi uma história mentalmente. Imaginei que tomara o cavalo de meu pai, seguira a rota da carroça e, finalmente, a encontrara. Falei com a menina e persuadi-a a fugir comigo. E, naquela noite mesmo, eu a pus em meu cavalo e galopamos através dos prados. Depois de algumas horas, chegamos a um campo. E ao passarmos por ele, reconhecemos que era o mesmo que havíamos deixado horas antes. Desistimos naquele dia, mas na noite seguinte tentamos nova fuga e a mesma coisa aconteceu. O cavalo voltava sempre ao mesmo lugar. Então, resolvemos que não devíamos fugir. Esperaríamos até eu persuadir seu pai a dar-me a filha....
                Sempre pretendi escrever esta história e publicá-la. Cheguei a começar uma vez, mas compreendi que não era bem uma história,e sim o começo do amor para mim. 
                No começo de minha infância, logo que aprendi a ler, consegui um livrinho: a "Vida de Washington", de Weem. lembro-me de ter lido sobre as batalhas pela liberdade do país. Nenhuma outra se fixou em minha imaginação tão profundamente como a de Trenton, Nova Jersey. A travessia do rio, a contenda com os hessos, as agruras suportadas naquele tempo, tudo se gravou em minha memória mais do que qualquer acontecimento singular da Revolução. Revejo-me pensando, então, como verdadeiro menino que eu era, que devia ter havido alguma coisa de muito importante para que esses homens combatessem. 
                1827.  Ele encarrega-se de fazer navegar um barco através do Ohio, a dezesseis milhas de sua casa. Eu observava um novo barco e  meditava se poderia fazê-lo mais forte ou aperfeiçoá-lo de qualquer forma. Dois homens vieram da praia, em carruagem, com malas. Depois de olharem os diferentes barcos, escolheram o meu. Perguntaram:
                  - A quem pertence este? 
                 Eu respondi, um tanto modestamente: 
                  -  A mim. 
                  - Poderia, disse um deles, levar-nos ao vapor? 
                  - Certamente, respondi. 
                  Estava contente de ter uma oportunidade de ganhar alguma coisa. Supunha que cada um me daria duas ou três moedas. Remei até o vapor. 
                 Eles subiram à bordo, eu suspendi suas pesadas malas e as pus no convés. O vapor estava quase partindo, quando reclamei que eles se tinham esquecido de me pagar. Cada um tirou do bolso meio dólar de preta e o atirou ao chão de meu barco. Mal podia acreditar que eu, um pobre menino, tinha ganho um dólar em menos de um dia. O mundo pareceu-me mais formoso e amplo. Fiquei mais esperançoso e confiante a partir desse momento. "

"Esta é uma adaptação de An Autobiography of Abraham Lincon, compilada por N. W. Stephenson." 
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Nicéas Romeo Zanchett 
          


quarta-feira, 1 de agosto de 2018

AS ORIGENS DOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA


               Enquanto a Europa, abalada pelas últimas guerra de religião, ia procurando endireitar suas condições políticas e espirituais, a Inglaterra preparava-se para enfrentar uma crise dinástica e parlamentar da mais alta importância. Fermento de origem de tanta confusão eram as idéias puritanas, isto é, aquela corrente religiosa, firmada na austeridade calvinista, que se formara aos poucos no seio da igreja anglicana. Os puritanos, já fortes nos últimos decênios do século XVI, e mantidos no freio somente pelo respeito que Elizabeth incutia em seus súditos, começaram a fazer ouvir sua voz, sob o reinado de James I, hostilizando-lhe abertamente a politica.
              Naturalmente, às provocações, Estado e Igreja responderam com perseguições, embora de maneira não grave; assim, muitos puritanos viram-se obrigados a tomar o caminho do exílio. Alguns resolveram isolar-se de vez do mundo civilizado, para ir fundar, em uma terra onde sobre a qual não pesassem séculos de história e de preconceitos, uma nova e livre sociedade humana; e vê-se, então, na primavera de 1607, um navio atravessar o Atlântico-Norte e desembarcar, na costa americana, pouco mais de uma centena de colonos ingleses. Quanto ao país em que desembarcavam, aqueles homens, certamente, possuíam apenas escassas e fragmentárias notícias. 
             O clima parecia clemente, os indígenas não perigosos; assim, aquele exíguo grupo de pioneiros se lançou espontaneamente ao trabalho e, bem cedo, na zona do desembarque - na praia de Chesapeake, à vista dos montes Alleghany - onde fizeram um acampamento britânico com barracas e uma pote de madeira, que serviria de trapiche. Nesse local surgiu depois a cidade de Jamestown - Virginia em 14 de maio de 1607.  
              Tão logo chegaram, os novos colonos perceberam que, se a primavera e o verão eram cálidos, naquelas terras o inverno era bastante rígido; nem todos os imigrantes eram moços e robustos, de maneira que o frio e as privações da primeira invernada ceifaram a metade dos pioneiros. Mas a primeira experiência estava realizada, a cabeça de ponte fora estabelecida, e a resistia; àqueles cinquenta sobreviventes vieram juntar-se muitos correligionários, de maneira que a nova colônia, a colônia da Virgínia, começou a expandir-se. 
               Naqueles primeiros anos, a imigração para a América era feita segundo um sistema nitidamente britânico; isto é, o governo entregava, sob condições, a companhias comerciais, um determinado espaço de terra, confiando-lhes a exploração e a defesa desse território, embora considerando os colonos como cidadãos ingleses no lato sentido do vocábulo. Depois d primeira experiência da Virgínia, as Companhias comerciais multiplicaram-se e, com elas, os novos postos ingleses; o rei da Inglaterra, por força da viagem de descobrimento efetuada por João Cabot, em 1497, tinha conquistado direitos de soberania sobre toda a imensa região compreendida entre Terra Nova, o Labrador e Flórida, de maneira que as colônias se difundiram gradualmente, ao longo de toda a costa atlântica da América setentrional. O maior fluxo ocorreu, porém, para aquela zona, que recebeu o nome de Nova Inglaterra. O maior centro de imigração puritana tornou-se, em 1620, a colônia de Massachusetts, onde surgiu a cidade de Boston. 
               Mas não só os Ingleses foram os colonizadores do Novo Mundo; um forte grupo de Holandeses, por exemplo, estabeleceu-se desde 1624, à foz do Hudson, ali fundando a cidade de Nova Amsterdã; parece que o primeiro governador da colônia comprara a península, em que depois surgiu a cidade, por sessenta florins de ouro. Sobre aquela pequena península, denominada, depois, Manhattan, está hoje concentrada a maior organização financeira e econômica do mundo: o centro de Nova York. Lá pela metade do século, os ingleses ocuparam pacificamente a cidade, importantíssima como meio de comunicação com a hinterlândia, dela fazendo o porto mais ativo de todo o continente. Como os ingleses basearam seu direito de posse nas descobertas de Cabot, assim os Franceses apresentavam direitos sobre vastos territórios do Novo Mundo descobertos e descritos por Giovanni da Verrazzano, a quem Francisco I fornecera os recursos para a viagem; destas tão discutidas pretensões, nasceram as muitas guerras que, por quase dois séculos, se viram empenhados os Franceses, que se haviam estabelecido ao longo do Mississípi e Ohio, e os ingleses da Nova Inglaterra. Os verdadeiros senhores das terras, os índios, assistiam impotentes àqueles choques; em seguida, acabaram por se dividirem entre os dois campos, procurando obter, na discórdia entre os invasores, qualquer modesta vantagem para suas tribos. Contra os Europeus, os índios não  demonstraram, porém, a princípio, nenhuma hostilidade; se mais tarde, os combateram foi somente para defender seus pastos e seus direitos da indiscriminada sede de rapina dos brancos. Povo de tradições altivas e independentes, eles se recusaram, todavia, a trabalhar nas plantações coloniais, a soldo dos bancos, e, por isso, estes trataram de engajar, nada mais nada menos do que, como escravos, outros homens de cor, ou sejam, os negros, que se podiam "comprar" por pouco dinheiro, dos chefes de tribo africanas. Em 1619, desembarcaram, nas costas  da Virgínia, os primeiros negros; o tráfico de homens de cor assinala o início da prosperidade americana, mas trouxe consigo a chaga, ainda hoje, mais do que nunca aberta, do ódio de raça e do escravagismo. 

terça-feira, 31 de julho de 2018

HISTÓRIA DE ROMA E O RAPTO DAS SABINAS - Por Nicéas Romeo Zanchett


                 Para entender melhor o rapto das sabinas, vamos relembrar um pouco da história de Roma. 
                  Ela começa por um período mais ou menos clássico ou lendário, durante o qual reinaram sete reis sucessivos (de 754 a 510 a.C.). 
                    A República foi proclamada em 510, quando a população romana era, então, resultante da fusão dos romenes (latinos), dos ticienes (sabinos) e dos luceres (etrusco). A implantação da República deu lugar à criação de novas funções, tais como o Consulado e  a Ditadura. As lutas entre patrícios e plebeus duraram até o ano 300 da nossa era. Após consolidar seu interior, Roma passou à conquista da Itália (296 a 270) e, de 264 a 201, travou as duas guerras púnicas contra Cartago, que só terminaram com a destruição dessa grande rival, em 146 (terceira guerra púnica). A seguir, Roma^reduziu a Grécia a província romana, intervindo no Oriente, mas passando a receber a influência benéfica dos helenos derrotados. Em breve tempo, Roma se tornou senhora do mundo de então e, em 31 a.C, Otávio, seu grande general, foi proclamado imperador (imperatur), sob o nome de Augusto. Com a morte deste (em 14 depois de  Cristo) o poder supremo passou aos Césares (Tibério, Calígula, Claudio, Nero, etc.) e depois aos Flávios (Vespasiano, Tito, e Domiciano). 
                   A história mais antiga dos povos e das cidades se confunde geralmente com a lenda. Essa lenda se entrelaça com aquela da famosa guerra de Troia, cantada também pelo poeta Homero, na Ilíada, que foi travada mais de mil anos antes de Cristo, na longínqua Ásia Menor. 
                 Conta-se que, quando os Gregos, vencedores, conquistaram e arrastaram aquela cidade, todos os heróis troianos foram massacrados, com exceção de Enéias, filho de Aquiles e, da deusa Vênus. Ele conseguiu fugir da cidade em chamas, com seu filhinho Iulo e o velho pai. Aquiles e, depois de uma longa e aventurosa viagem, chegou às costas do Lácio, onde vivia o povo dos latinos. Com a ajuda de outros povos locais, combateram contra aquele e em particular contra os Rútulos, cujo rei, Turno, queria desposar Lavínia, filha do rei dos Latinos. Também Enéias aspirava à mão daquela princesa e, por desejo de Turno, homem forte e violento, realizou-se um duelo. Enéias, certo de seu destino de herói, atacou impiedosamente seu adversário e em breve sua espada caiu sobre Turno e matou-o. Enéias casou-se com Lavínia, tornando-se rei dos latinos. Iulo, seu filho, fundou uma cidade, denominada Alba, que, devido às suas casas dispostas em longa fileira, foi depois chamada de Alba-a-Longa. 
               Desta cidade não tivemos notícias até o século VII a.C., quando, segundo a lenda, subiu ao trono de Alba-a-Longa Númitor. Amúlio, irmão do rei, mediante uma conspiração, depôs Númitor do trono e declarou-se rei de Ala-a-Longa, obrigando Rea Sílvia, única filha do irmão, a tornar-se Vestal. As Vestais, inteiramente consagradas ao culto da deusa Vesta, não podiam casar, sob pena de morte. E esta foi a sorte de Rea Sílvia, quando Amúlio soube que ela tivera dois filhos do deus Marte. Segundo os usos daquela época, a mulher foi enterrada viva e os dois gêmeos atirados ao Rio Tibre. 
              Mas o servo, que devia executar a ordem, pusera o cesto, onde se encontravam os dois meninos, sobre as águas do rio. O cesto encalhou entre os caniços das margens e os pequenos foram encontrados por uma loba, que, ao invés de dilacerá-los, amamentou-os. 
                Mais tarde, o pastor Fáustolo recolheu-os, levou-os para sua choupana e criou-os como filhos. Ao chegarem a idade adulta, Remo e Rômulo conheceram sua origem e em seus corações acendeu o desejo de vingar-se do usurpador. Mataram Amúlio e reconduziram ao trono Númitor, que desde longos anos mofava prisioneiro. 
               Em agradecimento, Númitor doou aos sobrinhos uma área de terra juntoà margem esquerda do Tibre, não distante do ponto em que o pastor os encontrara. Os dois irmãos puseram mãos a obra, traçando, antes de tudo, o sulco que iria limitar a nova cidade. Era o dia 21 de abril do ano 753 a. C. Como ambos desejassem dar o próprio nome à cidade, resolveram interpretar a vontade dos deuses, estabelecendo que aquele dos dois que visse voando maior número de pássaros seria o escolhido. Subiram a dois morros diferentes: Remo foi para o Aventino e viu sete abutres e Rômulo, sobre o Palatino, avistou doze . A cidade, de Rômulo, passou a chamar-se Roma. Isto é o que conta a lenda. Mas é provável que o nome Roma significasse "a cidade do rio", e,  em tal hipótese, dever-se-ia conjeturar que o nome de Roma não deriva de Rômulo, mas vice-versa, Rômulo e Roma: Romulus, o mítico fundador da cidade, o primeiro cidadão romano. 
                 Remo, despeitado, devido à vitória do irmão, ultrapassou, em gesto de desprezo, o sulco; e Rômulo, tomado de cólera, matou-o, demonstrando, assim, que a ninguém era permitido ultrajar Roma. 
                  Quando tudo ficou pronto Rômulo acolheu os primeiros habitantes em seu pequeno povoado: eram bandidos salteadores, obrigados a fugirem de suas terras, pastores sem morada fixa, homens rudes e ferozes. Foram esses os primeiros romanos, os progenitores daquele povo que iria conquistar o mundo. 
                 Dessa forma, Rômulo foi o primeiro rei de Roma, e conduziu várias guerras contra as aldeias vizinhas. Isso feito, dedicou-se também às tarefas de paz. Dividiu a população em tribos e fez-se assistir por uma assembléia, denominada "senado", porque constituída de cidadãos já de idade avançada. 
               Mas a população da cidade era formada exclusivamente por homens; então (sempre segundo a lenda), Rômulo organizou uma festa em honra de Netuno e convidou para esta, as famílias de um povo limítrofe, os Sabinos. E, quando os jogos estavam mais animados do que nunca, Rômulo fez um sinal aos romanos, e estes atiraram-se para cima das moças sabinas e, entre o espanto dos Sabinos, levaram-nas rapidamente para sua cidade. 
                 Os sabinos tomaram armas contra os romanos, mas as mulheres sabinas se intrometeram entre os pais e os maridos, os quais acabaram confraternizando e resolveram fundir-se num só povo, embora conservando cada qual seu próprio rei. Tito Sácio, que era rei dos sabinos, foi morto, e Rômulo passou a reinar sozinho. Estava, porém, convencionado que, ao morrer este, seria eleito um rei sabino. E isso aconteceu quando, durante uma revista militar, desabou um tremendo temporal e Rômulo desapareceu misteriosamente. Espalhou-se a notícia de que ele tinha sido assassinado pelos seus inimigos políticos, mas os senadores afirmaram que o deus Marte o raptara em um carro de fogo, levando-o para o céu.  
              Rômulo foi, então, considerado um deus e adorado sob o nome de Quirino. O novo rei Sabino foi Numa Pompílio; religioso e pacífico, ele deu sábias leis ao seu povo, dividiu o ano em doze meses e erigiu um templo em honra ao deus Jano, cujas portas permaneceriam fechadas durante o tempo de paz e abrir-se-iam em tempo de guerra. 
               O terceiro rei, Túlio Ostílio, foi, ao invés, belicoso. Mandou arrasar Alba-a-Longa, depois do combate entre os Horácios e os Curiácios. Os primeiros, três irmãos romanos, deviam enfrentar, em combate, os segundos, três irmãos curiácios. Dois dos Horácios já haviam tombado. O supérstite fingiu fugir, e os adversários passaram a persegui-los. Assim, ele pode enfrentá-los isoladamente e matá-los. 
                 Anco Márcio, que sucedeu a Túlio Hostílio, era neto de Numa Pompílio. Foi um rei sábio e pacífico. Mandou construir a cidade e o porto de Ostia, a ponte Sublício e o cárcere Mamertino. 
                     Os últimos três reis - Tarquínio Prisco, Sérvio Túlio e Tarquínio, o Soberbo - foram etruscos. O primeiro, após haver usurpado o trono de Anco Márcio, derrotou os latinos e os sabinos. Mandou construir aquedutos, o Circo, o Fórum e a Cloaca Máxima. Sérvio Túlio foi o primeiro a criar moeda, por meio de cunhagem. Ampliou Roma, dando-lhe novas muralhas e deu ao povo uma constituição menos dura, o que lhe valeu a inimizade dos patrícios. Aproveitando-se do descontentamento, o genro, Tarquínio, assassinou-o e tornou-se o último rei de Roma, sob o nome de Tarquínio, o Soberbo. Mandou matar muitos cidadãos e senadores e rodeou-se de um corpo de guardas armados daqueles fasci littri que, de origem etrusca, permaneceram para sempre como símbolo de autoridade e de justiça. 
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Nicéas Romeo Zanchett 

sábado, 28 de julho de 2018

A REPRESSÃO SEXUAL DA IGREJA


                                              A REPRESSÃO  SEXUAL DA IGREJA 
                Desde os primeiros anos do cristianismo ocidental, a mulher é considerada como "impura" e constitui, então, para o homem, um obstáculo no caminho da santidade.  Essa visão da "pecadora" não nos foi dada por Cristo; foi proposta por São Paulo, que pregava a nova religião numa sociedade de costumes particularmente corrompidos. 
                Historicamente a Igreja Romana sempre desprezou o sexo. Santo Agostinho, o mais célebre dos Padres da Igreja, considerava incompatíveis com Deus e a Natureza, numa perspectiva sobrenatural. Essa atitude profundamente arraigada torna difícil a adaptação da Igreja à nova sociedade que, após ter reabilitado a sexualidade, a liberta e exalta. 
                A aspiração a uma revisão dos valores, a uma reabilitação  dos princípios de prazer, surgiu num Ocidente próspero. Foi engendrada pela própria prosperidade. Entretanto, esse tema ainda é tratado com superficialidade, tanto nas pesquisas como nas discussões, por grande numero de pais, professores e responsáveis pela nossa sociedade. 
                Duas idéias governam os textos bíblicos que tratam da sexualidade: a primeira é que o sexo é um mistério que é preciso cercar de respeito; a segunda é que o casamento é a forma desejada por Deus para as relações sexuais. Entretanto, os judeus das origens do cristianismo aceitavam que os prazeres da vida fossem vividos plenamente. No antigo testamento não existe nenhuma proibição às relações sexuais antes do casamento, como também, nenhum trecho da bíblia rebaixa a mulher para exaltar o homem. Foi apenas depois do exílio que o povo judeu  desenvolveu a ideia  de que os prazeres, particularmente o prazer sexual, deviam ser condenados.
                A Igreja considera o corpo, especialmente  da mulher, como instrumento privilegiado da tentação. A incessante exaltação do celibato por São Paulo, revela seus profundos problemas pessoais em relação à sexualidade. Alguns religiosos, apaixonados por psicanálises, acreditam ver em seus propósitos uma homossexualidade latente e reprimida. São Paulo marca o ponto de transição entre a atitude sadia e positiva para o corpo, que caracterizava o Antigo Testamento e o próprio Jesus, e a atitude dualista e negativa que não parou de se expandir no Ocidente.  Ele aconselhava os cristãos preocupados com a saúde e seguirem  seu exemplo e não se ligarem a nenhuma mulher. 
              A moral cristã foi, aos poucos, se edificando em volta da convicção de que a sexualidade devia ser evitada como o "mal essencial", à exceção do mínimo que considerava necessário para manter viva a raça humana. A prática sexual só foi desculpável na procriação. Com isso a Igreja considerava que tinha encontrado o ponto de equilíbrio declarando que o ato sexual em si não era condenável, condenável era o prazer que dele tiravam os indivíduos. 
             Os moralistas escolásticos editaram um código que regulamenta no menor detalhe a vida sexual. Dele, em nenhum estágio, o pecado é totalmente excluído, pois que a paixão necessária para desencadear o ato criador constitui um pecado, mas a gradação do pecado atinge o extremo. Para homens e mulheres casados criou-se camisas que permitiam conceber com um contato reduzido entre os corpos. Entretanto, as poluções noturnas  involuntárias são classificadas como pecados. Fazer amor em sonhos, durante o sono, ainda é considerado crime que deve ser declarado no confessionário. Na sombra do confessionário, os padres escutam as consciências e, como policiais, interrogam aquilo que consideram pecados da carne. 

Nicéas Romeo Zanchett 

A EPOPEIA DE GILGAMESH - Por Nicéas Romeo Zanchett



           Não podemos julgar uma civilização pelos simples fragmentos que se salvaram do naufrágio. Esses fragmentos são sobretudo litúrgicos, mágicos e comerciais. Seja por acidente, seja por pobreza cultural, a Babilônia, bem como a Assíria e a Pérsia, pouco nos legaram em literatura, em comparação com o Egito e a Palestina; o que dela recebemos confina-se ao campo comercial e às leis. 
                 Os babilônios escreviam em cuneiforme, sobre tabletas de argila mole, com um estilete ou lápis apontado em forma de cunha, ou prisma triangular; depois secavam-nas e coziam-nas, obtendo assim duráveis manuscritos de tijolo. Se o escrito era uma carta, polvilhavam-na e colocavam-na em envelope também de argila, sempre marcado com o selo do remetente. Tabletas em vasos classificados e dispostos em prateleiras enchiam numerosas bibliotecas nos templos e palácios da babilônia. Essas livrarias perderam-se; mas uma das maiores, a de Borsippa, foi copiada e conservada na biblioteca de Assurbanípal, cujas 30 mil tabletas foram a principal fonte dos nossos conhecimentos sobre esse admirável povo. 
                A decifração da língua babilônia quebrou a cabeça dos estudiosos durante séculos, mas em 1802 Georg Grotefend, professor de grego na Universidade de Gottingen, expôs à Academia dessa cidade os seus trabalhos.
                   Depois dessa publicação, tudo parecia parado e esquecido; mas em 1835, quando apareceu Henry Rawlinson, diplomata inglês a serviço da Pérsia, e desconhecedor dos trabalhos de Grotefend, igualmente leu os nomes de Histaspes, dario e Xerxes numa incrição em Velho Persa, derivada do cuneiforme babilônico; e com essa base conseguiu decifrar o documento inteiro. Mas aquilo não era babilônico; Rawlinson teria, como Champollion, de encontrar a sua Pedra de Roseta - alguma inscrição ao mesmo tempo em língua persa e babilônica. E finalmente encontrou nas montanhas da media: Dario I fizera gravar a memória das suas guerras e triunfos em três línguas - persa, babilônia e assíria. 
               Os babilônios não se interessavam por literatura; seus escritos eram um instrumento para facilitar os negócios. Apesar disso foram encontrados  fábulas em verso, hinos divididos em linhas e estâncias; uns tantos versos profanos; rituais religiosos que pressagiavam o drama, embora não chegassem até ele; além de toneladas de historiografia. As crônicas oficiais memoravam a piedade e as conquistas dos reis, as vicissitudes de cada templo, e os acontecimentos notáveis da cidade.
           Dose tabletas quebradas da biblioteca de Assurbanípal, hoje no Museu britânico, revelam a poesia épica da Mesopotâmia - A Epopéia de Gilgamesh. Como a Ilíada, é uma concreção de histórias soltas, algumas das quais revertendo à Suméria de 3.000 a.C.; ali se conta a história do Dilúvio. 
                Gilgamesh foi um lendário rei de Uruk ou Erech, descendente do Shamash-napisthtim que se salvou na arca e ficou imortal. Gilgamesh entra em cena como uma espécie de Adônis-Sansão - alto, macio, poderosamente belo e forte. 
"Deus por dois terços
E um terço homem,
 Ninguém iguala a forma do seu corpo...
Todas as coisas viu, esmo as dos confins da terra, 
Tudo arrostou, tudo aprendeu; 
Devassou todos os segredos 
Através do manto que os esconde. 
Viu tudo que era oculto
E o que era coberto descobriu
Dos tempos antes do dilúvio trouxe notícia; 
Foi para muito longe
Dando-se a todos os trabalhos e azares; 
Escreveu então numa pedra a história de sua obra."

                  Gilgamesh é um poema do quarto milênio antes de Cristo, que conta a epopéia do homem sumeriano. Ele é um herói - um terço homem e dois terços divino - que faz uma viagem em busca da vida eterna. Ele consegue, mas torna a perdê-la. Poema da criação, do dilúvio, da angústia humana e do dilema da razão em frente do inevitável. Tal como o homem moderno, Gilgamesh profanou a natureza ao matar o guardião da floresta. Nesse momento ele perdeu a parte divina e tornou-se um simples mortal.
                    Conta a história que há muitos e muitos anos, um homem príncipe, e assim aclamado na cidade de Uruk, onde nasceu. Lá, onde reinava a raça humana sob a morada de Anu, viveu e cresceu Gilgamesh, o príncipe. Seus poderes eram tão prodigiosos que encantava as crianças, subjugava as mulheres e dominava os homens. por isso, os varões roeram-se de inveja. E reunindo-se foram queixar-se aos deuses. 
                Os deuses levaram a queixa a Aruru e à grande Deusa, aquela que sabe produzir a semente do humano. Imploraram: 
                - "Somente tu, misericordiosa, que formaste Gilgamesh e toda a raça, saberás criar um novo ser com força igual, para que a nossa cidade santa tenha paz."
                 E para comprazer algumas divindades, que uniam seus pedidos aos pedidos dos varões, a divina Aruru fez do barro um novo ser, que foi saudado com o nome de Enkidu.
                Esse novo ser era coberto de pelos, com uma formosa e áspera cabeleira. Era livre, tão livre que caminhava tranquilo nos desertos, comendo saborosas ervas com gazelas e bebendo água das fontes como gado. 
                Seu coração exultava quando estava junto rebanhos e se alegrava andando com as manadas. Era o protetor dos animais; e para afastar os caçadores, Enkidu desviava o curso dos rios, e para defender seus companheiros construía fossas cruzadas. Sua força só poderia ser igualada a uma uma das forças de Bel, o senhor da atmosfera, aquele que é deus do furacão.
                 Receosos, os caçadores começaram a se afastar daquela região, e já ninguém mais se aventurava a transpor as primeiras entradas do deserto. 
                  Não tardou para que Gilgamesh tomasse conhecimento do que estava acontecendo. Certo da existência de um novo ser vivente no deserto, para atraí-lo, o príncipe usou uma armadilha. 
                 Chamou uma sacerdotisa de Ishtar, iniciada na arte do amor, e amada dos deuses, propondo-lhe que seduzisse Enkidu. Esta, rápida como o vento, correu para o deserto levando sua arte. 
                    Gilgamesh mandou que o caçador acompanhasse a sacerdotisa ao encontro com Enkidu:
"Ei-lo, mulher! 
Abre teu cinto, 
Descobre teus encantos
 Para que ele te fareje!
Não hesites, apanhá-lo! 
Quando ele te vir, há de apaixonar-se. 
Abre então a tua veste para que ele se deite sobre ti!
Excita-lhe o êxtase, esse trabalho da mulher. 
Então ele se tornará estranho aos seus animais, 
Aos que nos campos cresceram com ele. 
Seu peito se apertará contra o teu."


                 Ao vê-la, Enkidu, cujos cabelos parecia ramos de videira, no princípio ficou assombrado, mas depois foi dominado pela Filha do Prazer e a ela se uniu. 
Então a sacerdotisa desapertou o cinto, 
Desvendou seus encantos
Para que ele a farejasse. 
Ela não hesitou, tomou-o, 
Abriu as vestes para que ele a cobrisse, 
E excitou nele o êxtase, trabalho da mulher. 
Seu peito apertou contra o dela
E Enkidu esqueceu onde havia nascido. 

                  Durante seis dias e sete noites Enkidu permanece com a mulher sagrada. Quando se cansa do prazer, procura seus amigos animais e, como não é reconhecido entristece-se. Muitas foram as vezes que Enkidu tentou ser recebido entre os companheiros, mas os seus joelhos o traíam e seu corpo ficava paralisado como a pedra. Por fim, vencido, Enkidu voltou para junto da mulher e sentou-se aos seus pés e ouviu dela: -"Tu és belo, Enkidu. Tu és um deus. És o rei dos desertos. O mais ágil dos reis. Porque não vais para Uru, a terra de Gilgamesh, aquele que pode fechar seus seus braços ao touro mais terrível? Porque a Filha do Prazer conhecia as artes para dominar e cativar, Enkidu ouviu a mulher e deixou-se conduzir. A sacerdotisa o censura dizendo: "Tu que és soberbo como um deus, por que vives entre os animais dos campos? Vem, vou conduzir-te a Uruk, onde está Glgamesh, cujo poder é supremo". Enkidu segue-a dizendo:  "leva-me para onde está Gilgamesh. Lutarei com ele e demonstrarei minha força, para que os deuses e os maridos de agradem."
                  Durante aqueles dias, Gilgamesh viu em sonhos um homem de prodigiosa força que o vencia.  Ao alvorecer o príncipe procurou sua mãe Ramabeli, que tudo sabia, e lhe confiou a sua inquietação. 
                  Ramabeli confortou seu filho, revelando-lhe que o homem forte era Enkidu, o novo ser, e que isto significava a profunda amizade que os uniria.
                 E assim foi, pois quando Enkidu chegou ao palácio, Gilgamesh o recebeu como a um irmão. 
                  Gilgamesh o vence, primeiro em força, depois em bondade; fê-lo sentar-se ao seu lado e deu-lhe um magnífico leito. Enkidu foi vestido com vestes reais. À esquerda do príncipe sentou-se em trono admirável, diante do qual os reis da terra se curvavam. 
                 O os homens de |Uruck respeitaram e honraram  aquele que era companheiro e amigo inseparável do príncipe.    
                 Uma noite, Enkidu teve um sonho funesto: um ser crepuscular  levava o seu corpo, por entre nuvens sombrias, à treva moradia de Nergal, de onde ninguém jamais voltara, tal como contavam os velhos magos.
                 Ao despertar Enkidu descreveu a sua visão dos infernos a Gilgamesh, e o príncipe, ansioso por conhecer os seus significados, encheu o pote de jade com leite e mel e o ofereceu a Shamash, o deus que ilumina todos os seres viventes.  
                   Pareceu a Glgamesh que se revelava uma resposta que supôs divina, dizendo: 
                 - Deves deixar o teu palácio, e ir combater Humbabá. 
                Em Uruk, contavam que morava além das montanhas de cedro um feros guardião chamado Humbabá. 
                 Ramabeli, ao saber do projeto do filho, revestiu-se com seus ornamentos sagrados e subiu as sete escadarias do templo. lá, no centro do santuário, ante o fogo mantido com incenso oferecido a Shamash, ela apresentou suas súplicas de mãe: 
                 - Shamash! Meu deus e deus da minha casa! Tu deste ao meu filho um coração que não dorme e permitiste que ele fosse tocado pela ambição. Eis que ele se prepara para ir lutar contra Humbabá. Por longínquos caminhos, ele enfrentará o desconhecido. Toma-o sob a tua proteção, ó meu deus! Shamash! Shamash! Meu deus e deus da minha casa!O povo de Uruk temeu pelo príncipe, mesmo os varões, que antes o invejavam, falaram dos perigos a que se expunha: Humbabá era um monstro horrendo, e para atingir as altas montanhas era preciso fazer uma jornada de muitas e muitas luas. 
                    O dois amigos partem com destino ao reino de Humbabá. 
                    Os perigos foram muitos; na viagem tiveram de enfrentar muitos animais selvagens. Lado a lado, sem descanso e sem medo, três zodíacos vividos, chegaram aos montes onde se erguia a insondável floresta; haviam verdes cedros na profundeza da verde floresta, domínio de Humbabá. 

          O monstro era mesmo terrível; sua voz era como uma tempestade; seu hálito desencadeava os ventos e sua floresta se fechava misteriosamente sobre o temerário que ousasse aproximar-se dali.  Enkidu tentou deter seu companheiro, sussurrando-lhe: 
                 - Não entres! Minhas mãos estão trêmulas e minhas costas pesam! Não entres!
               Mas Gilgamesh já não ouvia mais, pois - maravilha - em deliciosas sombras e luminosos caminhos, abrindo-se em mais cedros perfumados, santuário de deuses e reino de Inaná, a floresta surgia ante seus olhos deslumbrados. 
                 Gilgamesh, no entanto, lançou seu desafio à terra, chamando pelo horrendo monstro, cuja presença o guardião Silêncio encobria. E para armar suas forças, Gilgamesh celebrou os ritos guerreiros de sua raça; cravou um círculo fundo na escura terra e ofertou 12 grãos do mais perfeito cereal. Assim ele consagrou aos mortos, entoando pungente e fúnebre lamentação que encheu os ares. Depois, galgou o cimo mais alto da mais alta montanha, ali invocando Shamash: 
                 - Ó, deus! Tu que conduzes o dia por sobre a larga terra! Tu, senhor, que permitiste que aqui chegássemos! Shamash! Senhor! Manda um sonho a Enkidu! 
                 Então, quando o sono de Enkidu já percorrera a metade da noite, ele acordou, as vestes umedecidas pelo terror. E vendo Gilgamesh curvado sobre ele, lamentou-se: 
                 - Quem me acordou! Quem me tocou? Por aqui passou um deus! Minha carne ferida! Os céus clamaram e a terra gemeu! Na treva uma luz brilhou. Mas ela se fez fogo e a morte feita escura chuva transformou o fogo em negras cinzas!
                Mais de uma vez, como os homens comuns, Gilgamesh interpretou o sonho através das nuvens criadas pela sua desmedida ambição.  Viu o sonho como um sinal de vitória no combate e a ele se atirou, chamando a si as forças telúricas para que o protegessem. E os elementos se fizeram vivos: o furacão, o vento do norte, os ares glaciais e o turbilhão. 
                  Nove ventos vieram do horizonte, desvendando a face do Guardião. Humbabá não podia recuar e não podia avançar. 
                 Tendo-o sob o seu domínio, Gilgamesh teve ímpetos de poupá-lo, pois que de suas mãos fora feita toda a classe de portentos. Mas Enkidu, o que tinha sido tocado pelo amore pela morte, lembrou ao príncipe o perigo extremo a que se expunha deixando o monstro viver. 
                    Seguindo o conselho dado pelo amigo, Gilgamesh, vencendo o seu primeiro impulso, decepou de um só golpe a monstruosa cabeça, tomando, então, posse da montanha. 
                   Dessa forma foi destruído o santuário de Inaná, a Grande, e Gilgamesh atraiu sobre si a maldição de Bel, que é senhor de toda a natureza, pois o orgulho não lhe permitia sentir a desordem desencadeada e a blasfema profanação. 
                  Voltam triunfantes e felizes. Gilgamesh desfez o emaranhado dos cabelos, retira seu arnês de guerra, veste-se de branco, enfeita-se com real insígnia e põe o diadema. E assim, engrandecido, sentindo-se purificado, foi visto do alto pela insaciável deusa Ishtar, tomada de amor, ergue para ele os seus grandes olhos e diz: 

Gilgamesh! Vem e sê meu amante!
Teu amor, dá-me como presente; tu serás meu esposo e eu serei tua esposa.
Eu te porei numa carruagem de lápis-lazúli e ouro, com rodas douradas, montadas em oxis; 
Serás puxado por grandes leões, e entrarás em nossa casa dentro do incenso do cedro... 
Toda a terra perto do mar abraçará teus pés, reis se curvarão diante de ti, e te trarão, como tributos, os dons das montanhas e das planícies. 

                   Os olhos de Ishtar eram belos e misteriosos como o segredo da noite, mas a deusa era inconstante e seu amor podia atrair infortúnios sobre o amado e amante. Gilgamesh repele-a, e recorda o duro fado por ela infligido a diversos amantes, inclusive Tammuz, um falcão, um garanhão, um leão e um jardineiro. E disse-lhe: "Tu me amas agora, depois tu me baterás, como fizeste a este. Rejeitada e irada Ishtar pode ao grande deus Anu que crie um touro selvagem capaz de matar Gilgamesh. Mas Anu recusa-se e repele-a: "Não te calarás, nem agora que Gilgamesh enumerou tuas infidelidades e ignominias? "
                  Revoltada Ishtar ameaça Anu dizendo que, se não a atendesse, iria suspender em todo o mundo o desejo carnal, e assim destruiria todas as coisas vivas. 
                  - Ó divino pai! Não ignoro quão imenso é teu poder e se te tenho servido cada noite, ouve a minha súplica! Gilgamesh ousou me ofender! Temerário, ele revelou meus segredos de desígnios! Castiga o imprudente! Que o touro celeste o ataque multiplicando a força com que ofendeu a tua filha!
                 Anu, então, cede e cria o feroz touro; Ao vê-lo, Enkidu vem logo em socorro do amigo. Célere, ele colhe o touro pela cauda e, girando-o acima da cabeça, lança-o contra a dura terra. Ainda irado, Enkidu vislumbra Ishtar sobre os muros do Uruk, lamentando-se diante das suas sacerdotisas. Então, estraçalhando o animal vindo do céu, volta-e para as muralhas da cidade santa e lançou a cabeça do touro sobre a sagrada face da deusa. Gilgamesh rejubila-se, orgulhoso, porém, tomado de tardios receios, fez escorrer um denso óleo dos cornos do touro e, ali mesmo, o Ofertou a Lugalbanda, o que mora na raiz do reino vegetal. Depois lavou as mãos nas águas sacras, e iniciou com Enkidu a volta ao reino de Uruk. Pelas estradas ecoavam as exclamações dos povos agradecidos: 
                 -" Tu brilhas entre todos os homens, Gilgamesh! brilha entre os príncipes da terra! "
                 Quando chegam ao palácio de Uruk, Gilgamesh narrou seus feitos em reunião solene. Mas Ramabeli, a que tudo sabia, mãe do soberbo por quem se inquietara tantas luas, do seu orgulho desmedido muito se compadeceu.
                 Gilgamesh, porém, ao receber as homenagens, mal se advertia da piedade materna. No entanto, Ishtar, a divina tão duramente ultrajada, não dormia. E já um novo castigo a deusa engendrara.
                  Por suas artes mágicas, Enkidu foi envolvido por nuvens e um horrível mal apareceu nele. Durante o curso de 12 funestas noites, sua poderosa natureza lutou contra a morte, mas foi vencido. No décimo-terceiro dia, depois de mais uma noite vigilante, Enkidu expirou nos braços do irmão e companheiro amado Gilgamesh, o invencível príncipe guerreiro. Então, o soberbo lamentou sua sorte: 
               - Amigo! Irmão! Tigre dos desertos! Tu que comigo desceste a todos os abismos e comigo subiste os mais altos montes, a que te submetes? O que te mantém como sombra do que eras e não permite que me respondas? 
                   Em desespero, ele respirou sobre o amigo, procurando ainda escutar-lhe o coração. Tocou-lhe o peito com ternura extrema. Mas Enkidu estava morto. E sentindo-se perdido, Gilgamesh fugiu do palácio, pois a morte também estava dentro dele, pois já não era mais imortal.
                Atravessou planícies e vales. E por onde passava, erguiam-se as cruéis indagações: 
               - Por que a visão da morte destruiu a tua força? Por que ela elidiu a tua face? Partiu-se o teu coração e transformados foram os teus traços. O terror corroeu as tuas entranhas. A dor e a tristeza plasmaram outra face! 
                 E Gilgamesh, fugindo lamentava-se: 
                 - Eu fujo pelos campos pois Enkidu, amigo e irmão de armas, tigre dos desertos, que comigo destroçou os leões e enfrentou todas as provas, foi confirmado em seu destino. Foram 13 as noites e 13 foram os dias que sobre ele derramei meu pranto. Eu fujo da morte. Meu amigo, que jamais foi igual à lama da sua origem, despareceu. E eu, que me deitei ao seu lado, sou incapaz de construí-lo outra vez!
                 Gilgamesh medita sobre o mistério da morte. Ninguém escaparia, então, àquela dolorosa fatalidade?  E o medo abriu caminhos para os pés de Gilgamesh. 
                 Depois de muito meditar, tomou conhecimento de que um homem chamado Shamash-napishtim devia saber o segredo da imortalidade. Gilgamesh resolve procurá-lo, e achá-lo, nem que tenha de viajar o mundo inteiro. O caminho que toma leva a uma montanha guardada  por dois gigantes, cujas cabeças tocam o céu e cujos peitos chegam ao Hades. Mas eles o deixam passar, e Gilgamesh caminha doze milhas por um túnel escuro. Emerge na praia dum grande mar e vê sobre as águas o trono de Sabitu, a deusa virgem dos oceanos. Chama-a para que venha ajudá-lo a transpor as águas; "se não vieres, se eu não puder fazer isso, deitar-me-ei na terra e morrerei." Sabitu, apiedada, permite-lhe que atravesse as águas em quarenta dias de tempestade, até alcançar a Ilha Feliz, onde vive Shamash-napishtim, o imortal. Guilgamesh pede-lhe o segredo da imortalidade e Shamash-napishtim responde com a longa história do dilúvio, e de como os deuses, arrefecendo-se da ira destruidora, fizeram-no imortal por ter ele salvo a humanidade. E oferece a Gilgamesh uma planta cujo fruto rejuvenesce a quem o come; e Gilgamesh, feliz, volta da sua longa jornada. Mas havendo parado no caminho para banhar-se, uma serpente lhe rouba a planta. (A serpente era adorada por muitos povos como símbolo da imortalidade, por causa do seu aparente poder de escapar à morte com a mudança da pele.)
                     Aquele lugar de  delícias era a morada de Sabitu, a que reina na extremidade da terra, onde começam as águas. 
                      Ao ver Gilgamesh vestido de fera - que para os deuses a roupagem dos mortais é feita do íntimo do humano - a deusa oculta-se rapidamente em sua morada.
                      Mas o desvairado, Gilgamesh ameaçou destruir os quícios (dobradiças) e arrombar a porta que se fechava. Diante de tal audácia e furor, a deusa consentiu em ouvi-lo. Mas, ao saber da ambição do príncipe, o advertiu: 
                    - Porque percorre terras e mares? A vida tal como a procuramos não existe para o homem. Quando os deuses criaram o ser humano,deram-lhe a vida, mas retiveram nas mãos a eternidade. Satisfaz teu ventre! Rejubila-te nas noites e nos dias, e cada manhã será de festa! Que as tuas vestes alvas e a tua fronte clara! Lava-te nas águas e considera quão miúdo é aquilo que a tua mão pode conter. Assim a tua amada se alegrará demorando em teu peito! Quanto à eternidade, jamais encontrarás o caminho, pois nunca - desde os tempos mais recuados - pés humanos atravessaram o grande mar. Difícil é andar sobre as suas águas e impossível nelas abrir rota precisa. Secretas e profundas são as águas da vida eterna! Como tu atravessarias os escuros mares se a boca dos abismos espera e traga o ser tantas vezes quantas a vida na carne se lhe conceder?  - Mas, obstinado, Gilgamesh implora à deusa e tanto suplica que dele a Sabitu se apieda, aconselhando-o a procurar Urshanabi, barqueiro do magnânimo Utnapistim, intrépido nauta da mais atroz navegação. 
                  E indo à sua procura, Gilgamesh o encontrou. E ele lhe pediu 120 toras de madeira resistente para construir um barco. E depois de construí-lo, partiram. 
              Por muitas luas eles enfrentaram o mar revolto até atingir as águas da morte que cercam o paraíso de Utnapistim, impedindo qualquer aproximação. Mas Urshanabi, conhecendo o perigo, conseguiu evitar o contato mortal dos galhos e longas varas que eram ciladas para os incautos. Na centésima vara, a passagem foi aberta. 
                   E mostrou-se Utnapistim em toda a sua glória imóvel, na serenidade quieta dos que gozam a vida eterna. 
                  Em face da ânsia de imortalidade que o príncipe experimentava, o imortal patriarca assim falou:  
           - Foi por homens como tu que trabalhamos para construir a Grande Casa? Para criaturas semelhantes, os montes e vales brilham a cada aurora? A forma menor só escapa à prisão da substância para se integrar no sentido que criou. A voz foi dada ao ser humano para que cante em júbilo com os deuses, a cada novo dia. 
                 Nessa tarefa, que parece mínima, participam do divino, e preservada se faz a tarefa dos deuses. Homem algum, ser criado na forma, jamais pode vencer a própria morte. Samu, o sentido divino, escreve todos os destinos, mas o Annunaki, demônios engenhosos, dificultam o caminho verdadeiro que leva até os céus. Eis porque não e dado aos mortais criados adivinhar, em cada união vital, os seus momentos finais. Se Utnapistim se tornou imortal e venceu a lei da morte transpondo o castigo do dilúvio imposto àqueles  que viveram presos aos seus próprios e únicos desejos, foi por benevolência do deus depositário desse privilégio, que no patriarca reconheceu apenas o desejo santo de preservar em vida os seres dos dois reinos. Imensa e poderosa é a força da lei e nela eu te proponho apenas uma prova, ó príncipe: -se o sono é a imagem da morte, que tu, herói, não durmas durante seis dias e seis noites. 
              A assim foi que Gilgamesh tentou manter-se vigilante, mas dias antes do prazo prescrito o seu corpo oscilou como a árvore sob os golpes de um machado. E o patriarca, ante a confirmação de sua fraqueza, novamente lhe falou: 
               - Tu te achavas um forte, desejoso de vida eterna, mas o sono, como um furacão, soprou sobre teu corpo. 
                 E tendo assim falado, impassível se calou. Então o príncipe desesperado compreendeu que só lhe restava retornar a Uruk, convencido da inutilidade de sua viagem. 
            Mas, ao vê-lo quase sucumbido, a mulher  de Utnapistim, compadecida, revelou a Gilgamesh o maravilhoso segredo: no fundo dos mares, nos profundos abismos, desabrocha uma planta oculta e delicada. Recoberta de espinhos que ferem e cortam, assim ela se defende daqueles que tentam recolhe-la em seu mistério. Seu secreto nome diz que o velho, comendo-a, retorna à mocidade e que o jovem conserva eterna a juventude que ela contém. 
                 Ao ouvir essa informação, o príncipe animou-se e partiu agradecido. 
                Urshanabi levou-o através do mar até o horizonte mais distante. E lá, onde o céu e as águas se confundem brandamente, Gilgamesh, atando pesadas pedras aos pés, atirou-se e submergiu nas remotas profundezas. 
               Com cuidados extremos, nas mãos que sangravam, o homem colheu a misteriosa planta que encontrou. Enfim, a imortalidade era dele! 
                  Assim, Gilgamesh subiu à barca do intrépido barqueiro e quando o barco chegou à margem, despediu-se agradecido, inciando, tranquilo, em pleno regozijo, outro caminho. 
                 Aconteceu, no entanto, que estando Gilgamesh no meio do caminho de volta, deparou com uma fonte que manava dentre pedras e, detendo-se, ele se curvou para saciar a sede. E ao se inclinar - incomparável maravilha - pode ver tesouros inauditos a rebrilhar no fundo. 
                Então depôs delicadamente à margem das águas, a planta que colhera nos abismos tenebrosos. E mergulhou na água em busca da miragem deslumbrante, tentando alcançar as formas coloridas que a ele pareciam um tesouro. 
               E ainda na água viu uma serpente azul, atraída pelo odos da planta mágica, aproximar-se pela terra, rastejando até a pedra onde a colocara, e em pássaro metamorfosear-se ao tocá-la. E colhendo-a velozmente em seu bico, fugir para os céus com o precioso ramo. 
                  Emergindo, Gilgamesh atirou-se à terra e, assistindo a ave distanciar-se, impotente, soluçou: 
                - Meus braços estão cansados. O sangue em meu corpo já circula lento. Nunca mais poderei realizar ação maior?  Ó deus, apiedai-vos de mim! 
                   Em prantos ainda, depois de muito errar, chegou ao seu reino e mais odiosa então lhe pareceu a morte porque Ramabeli, sua mãe, já não mais vivia e nem mesmo viviam seus velhos servidores. 
               Fechado em seu palácio, sua única companheira era a tristeza. E o nome  de Enkidu, irmão amado, era por ele repetido mil vezes em voz baixa, nas noites de solidão. Uma tarde, por fim, no salão em que escondia a sua dor, vislumbrou na escuridão que o envolvia, uma sombra, imagem do amigo que se fora. 
                   E a voz de Enkidu, gemendo, o advertiu: 
              - Gilgamesh! Irmão! Agora estou no reino de Nerga! Em treva permanente me encontro aprisionado e nem as feras, os animais cruéis, que juntos combatemos, gemiam como eu, quando feridos. O caminho para os céus ou para os infernos se inicia no coração do homem. As paixões do homem alimentam a serpente que o sufoca depois. Essa é a lei. Se de mim, que sou sombra, se alar um lume que através de ti, em espiral, alcance o céu, sete vezes por sete luas, perdoado eu estarei. Tu foste o meu irmão e meu exemplo no orgulho do clarão que me cegou! Alça-te, amigo! Transmuta as injúrias, os ódios e os temores! Transforma teus sentimentos e memórias em luz que ilumine os que passam antes de ti e os que virão depois. Este é o caminho... 
                  Gilgamesh indaga a situação dos mortos. Enkidu responde: -"Não posso dizer; se eu descerrasse a terra diante dos teus olhos, se eu dissesse o que vi, o terror te empolgaria e tu cairias. Mas Gilgamesh, símbolo dessa heróica estupidez chamada filosofia, iniste na pergunta. - "Sim, o terror me empolgará, eu cairei por terra - mas dize! Enkidu, então, descreve as misérias do hades - e com essa nota triste o fragmento da epopeia termina. 
              A sombra dissipou-se. E desde então Gilgamesh tentou, no silêncio, alcançar a distância que une os céus à terra. Muitas vezes o sol brilhou. Até que pudesse perceber a vida que há na terra como na água, no fogo e no ar. Só depois, o homem ouviu, sereno e sem cuidados, o pássaro que canta e canta oculto, em cada ser. 

NOTA FINAL
                A história de Gilgamesh é quase a única amostra pela qual podemos fazer ideia da literatura babilônica. Que na babilônia um agudo senso estético, senão profundo espírito criatdor, sobrepairou as comercialismo, podemos ver do que se salvou das artes menores. Ladrilhos pacientemente vidrados, finos trabalhos de bronze, pedra, ferro, marfim, prata e ouro, bordados, tecidos de ricas tinturas, luxuosos tapetes, mesas, cadeiras e camas de pés ornamentados - isso empresta graça, senão maiores méritos, à civilização da Babilônia. A joalheria  abundava profusamente, mas sem a finura da arte egípcia; a preocupação maior era a da exibição. Havia muitos instrumentos musicais - flautas, harpas, gaita de fole, liras, trombones, tropas, trombetas  e tamborins. Orquestras e cantores tocavam e cantavam, em coro ou individualmente, nos templos e palácios e nas festas dos ricos moradores. 
                 A pintura babilônica era uma arte subsidiária; decorava as paredes e as estátuas, sem tentar uma independência. 
               A arquitetura babilônica não pode ser julgada, porque o que resta mal se eleva a alguns pés acima do solo; portanto, não podemos saber que forma tinham seus palácios e templos. 

Nicéas Romeo Zanchett 


quarta-feira, 11 de julho de 2018

A MORALIDADE SOCIAL - Nicéas Romeo Zanchett


              Uma das funções da família é a transmissão do código moral aos seus membros. Já se disse que a criança, em seus primeiros anos, é mais animal que humana; a humanidade tem que lhe ser embutida dia após dia. 
                Biologicamente a criança nasce mal equipada para a civilização, pois seus instintos  são primitivos e só lhe proporcionam reações para as situações tradicionais ou básicas. No início da vida suas reações são mais propícias para a vida nas florestas do que em agrupamentos urbanos. Cada vício que tem já foi uma virtude indispensável na luta pela sobrevivência; suas virtudes passam a ser vícios depois que as condições que eram indispensáveis desapareceram. Portanto, um vício não é mais que uma nova forma de conduta, mas em geral um retorno a situações naturais que deixaram de existir.
                  O propósito do código moral consiste em ajustar  os naturais impulsos humanos que  geralmente não mudam, ou quando mudam o fazem de maneira muito lenta. 
                  Durante tantas gerações a gula, a cobiça, a desonestidade, a crueldade, e a violência foram impulsos tão úteis aos animais e aos homens, que todas as nossas leis, toda a nossa educação, e todas as nossas morais e religiões não conseguem abafá-los completamente; e alguns deles mostram ainda hoje algum valor de sobrevivência, isto é, revelam-se favoráveis à vitória do indivíduo nessa sociedade de consumo. O animal entope-se de alimentos porque não sabe se vai comer no dia seguinte; esta incerteza dá origem à cobiça. Os yakuts comiam vinte quilos de carne num dia; e semelhantes façanhas também são atribuídas aos esquimós e australianos. A segurança econômica é muito recente para já ter eliminado este impulso natural; podemos ver isso na moderna avidez com que os nossos homens e mulheres acumulam ouro e coisas que, em dado momento, possam transformar em alimentos, como o dinheiro, por exemplo. A avidez por bebida não é tão costumeira como por alimento, porque os grupos humanos sempre se formaram em torno dum bom suprimento de água. Não obstante, a ingestão de álcool é quase universal; não por motivo de alguma antiga bebida, mas porque os homens procuram no álcool o calor, ou o esquecimento das mágoas - ou ainda porque a água que lhes dão não é boa para beber. 
                  A desonestidade não é tão antiga como a voracidade, isto ocorre porque a fome é mais velha que a propriedade. Os "selvagens" mais simples parecem ser os mais honestos. "Sua palavra é sagrada," eles nada sabem da corrupção, da má conduta e da má fé que reina em todo o mundo civilizado. 
            À medida em que as comunicações locais e mundiais melhoraram, a ingênua honestidade dos primitivos povos africanos simplesmente desapareceu; o mundo dito "civilizado" lhes ensinou a arte da má fé. 
                       A desonestidade emergiu, no mundo todo, com a civilização, porque nesta há mais lugar para a "diplomacia", mais coisas para roubar - e a educação torna os homens mais hábeis. Quando a propriedade se desenvolveu entre os primitivos, a mentira e o furto entraram em cena. 
                   Os crimes com violência são tão velhos como a voracidade. A luta por alimento, por terras ou companheiras mais belas e interessantes, sempre foram motivos suficientes para ensopar o planeta de sangue; até hoje a nossa débil educação ou civilização não foi instrumento capaz  de suprimir da sociedade essa estranha forma de viver socialmente. O homem primitivo era cruel porque tinha de ser assim para sobreviver aos constantes perigos. Matar, roubar, destruir já estava incutido em sua natureza individual. A mais negra página da antropologia é a história da tortura primitiva, e do prazer que causava a dor alheia.  Muito desta crueldade estava associada à guerra; dentro da tribo, mesmo os homens mais violentos revelavam-se menos ferozes, e tratavam uns aos outros com certa civilidade e bondade. Mas desde que estivessem na guerra tinham de matar vigorosamente, aprendiam também a matar a paz; porque, para na mentalidade primitiva, nenhuma disputa chega ao fim antes que um dos disputantes caia morto. Entre muitas tribos o homicídio causava menos horror do que causa hoje a nós. Os fueguinos castigavam o homicida com o exílio até que seus companheiros de tribo ou clã esquecessem o crime. Os cafores consideravam o assassino "sujo", e obrigavam-no a andar com a cara preta de carvão para sempre ser reconhecido; mas depois de algum tempo, se ele se lavava, era novamente recebido na sociedade. Os selvagens de Futuna (como também na América) , olhavam para o homicida como para um herói. Em várias tribos nenhuma mulher se casava com homem que já não houvesse matado outro; daí a prática da "caça às cabeças", que ainda sobrevive nas Filipinas. Os que caçavam maior número de cabeças tinham preferência na escolha das melhores moças da tribo; estas se mostravam ansiosas dos seus favores, sentindo que com tal marido podiam tornar-se mães de filhos valentes. No nosso mundo "civilizado" quem tem mais dinheiro, ou patrimônio - mesmo que seja roubado - tem a preferência e admiração.   
                   Onde o alimento é escasso a vida perde seu valor. Os filhos dos esquimós, ainda hoje, matam os pais quando estes ficam velhos e inúteis; quando o filho não faz isso é considerado descumpridor do dever filial. A própria vida do homem primitivo não tinha valor para os demais; matava-se com muita facilidade. Isso, ao que podemos perceber, volta a acontecer nos dias atuais.
                  Os japoneses são considerado homens honrados e,por vergonha muitos se matam. Se um homem ofendido por outro mata-se ou mutila-se, o ofensor tem que fazer o mesmo ou tornar-se um pária; muito velho é o "haraquirí". Qualquer pretexto justifica o suicídio; algumas índias norte-americanas matavam-se quando seus homens as ralhavam;  conta-se que um jovem nativo da ilha de Trobriand suicidou-se porque a mulher gastou todo o seu fumo.
                 Transformar voracidade em poupança, violência em argumento, matança em litigio e suicídio em filosofia, constitui uma das tarefas da civilização. O fato de consentir o forte em roubar ou tirar do fraco de acordo com a lei representa, para alguns, um grande progresso. Nenhuma sociedade pode sobreviver, se permite que os seus membros se conduzam, em relação aos outros, como se comportam com os membros dos grupos inimigos; a cooperação interna é a primeira lei da competição externa. A luta pela existência não termina com o auxílio mutuo; mas incorpora-se, transfere-se ao grupo. A capacidade de competir com grupos rivais será proporcional à capacidade de se combinarem os indivíduos e famílias entre si. Daí o fato de cada sociedade incutir um código moral e de introduzir no coração do indivíduo disposições sociais mitigadoras do furor da luta pela vida; a sociedade encoraja-o, considerando virtudes, as qualidades individuais que redundam em vantagens para o grupo, e deixam de estimular as qualidades contrárias  - que passam a ser vícios. Deste modo, o indivíduo se socializa de fora para dentro, e o animal se faz cidadão. 
               Foi menos difícil gerar sentimentos sociais na alma do "selvagem" do que é elevá-los no coração do homem moderno. A luta pela vida alenta o comunalismo, mas a luta pela propriedade intensifica o individualismo. O homem primitivo foi talvez mais pronto no cooperar com os seus companheiros do que o faz o homem moderno; a solidariedade social ganhou-o mais facilmente desde que ele tinha mais interesse e perigos em comum com o grupo, e menos posses para separá-lo do resto. O homem natural foi voraz e violento; mas também bondoso e generoso, pronto a compartilhar com estranhos o que tinha, e a presentear seus hospedes. Todos sabemos que a hospitalidade primitiva chegava ao ponto de oferecer ao hospede a esposa ou uma filha para passar a noite juntos. A recusa de tal oferta constituía ofensa grave, não só para o hospedeiro como para a mulher dele; foram estes os maiores perigos com que se defrontaram os missionários. Muitas vezes o mau tratamento dado aos hospedes originava-se destas recusas. O homem primitivo tinha senso  de propriedade, mas nenhum ciúme sexual; não se perturbava com o fato de sua mulher ter tido relações sexuais com outros homens antes do casamento, ou de dormir com seus hospedes; mas, como dono dela, não tolerava copulasse com outro homem sem o seu consentimento. 
               As regras da cortesia eram, em muitos povos, bastante complexas, ou tão complexas como nas nações mais adiantadas. Cada grupo tinha modos especiais de saudar e dizer adeus. Dois indivíduos ao se encontrarem esfregavam-se os narizes, ou cheiravam-se, ou mordiam-se amavelmente; mas desconheciam o nosso beijo, beijo civilizado. Algumas tribos mostravam-se mais polidas que a média dos homens modernos; os dyaks, caçadores de cabeças, eram amáveis e pacíficos na vida do lar, e os índios da América Central consideravam o falar alto e os modos brutos do homem branco como sinais de má educação. 
                Quase todos os grupos concordavam em ter os demais grupos como inferiores a si próprios. Os índios americanos olhavam-se como o povo eleito, especialmente criados pelo "Grande espírito" como exemplo para o gênero humano. Uma tribo se chamava si mesma "Os Homens Únicos"; outra "Os Homens  dos Homens"; e os índios caribios diziam: "Só nós somos gente". Os esquimós acreditavam que os europeus iam à Groenlândia para aprender boas maneiras e virtudes.  Consequentemente, raro ocorria ao homem primitivo estender a outros grupos as restrições morais em vigor no seu; francamente admitia que a função da moral era fortalecer o seu grupo contra os outros. Mandamentos e  tabus aplicavam-se só aos da tribo; com os outros, exceto quando hospedes, era permitido agir à vontade de cada um.  Mas quando olhamos para o nosso "mundo civilizado" só vemos opressão ou tentativa de opressão entre os povos de diferentes culturas.
                 O progresso moral na história não está tanto no melhoramento do código moral como no alargamento da área em que ele é aplicado. As morais dos homens modernos não são superiores às dos primitivos, embora os dois grupos de códigos defiram consideravelmente no conteúdo, na prática e no emprego; mas as morais modernas são, em tempos de paz e normalidade, estendidas - embora com menos intensidade - a muito maior número de criaturas do que antes; embora o alcance do código moral tenha diminuído muito depois da Idade Média, em consequência do surto do nacionalismo. 
                À medida em que as tribos se reuniram em unidades mais amplas, denominadas estados, a moralidade extravasou dos limites tribais; e à medida que as comunicações permitiram reunir e assinalar estados, as morais atravessaram as fronteiras e começaram a aplicar seus mandamentos a todos os europeus, americanos e demais povos chamados brancos e,  por fim, a todos os homens do planeta. 
                   Talvez sempre tenha havido idealistas desejosos de estender o amor a todos os homens, e talvez em cada geração se ergam vozes, clamadoras no deserto, contra o nacionalismo e a guerra. O número desses homens provavelmente tenha crescido. Não há moral na diplomacia e se existe ética no comércio internacional é simplesmente porque semelhante atividade não pode viver sem umas tantas restrições, regulamentações - e sem a confiança. 
                   O comércio surge com a pirataria e culmina em moralidade. Poucas sociedade se contentam de repousar a sua moral sobre bases econômicas e utilitárias. Porque o indivíduo não é por natureza dotado de nenhuma disposição para subordinar os interesse s particulares aos do grupo, ou para obedecer a irritantes regulações que não vê apoiadas na força. A fim de dar à moral um invisível "compelidor" e fortalecer os impulsos sociais contra os impulsos individualistas por meio de compreensão abstrata, as sociedades utilizam-se das religiões. O antigo geógrafo "Estrabão" expressou ideias muito adiantadas a este respeito, ha dois mil anos. Disse ele: 
"No lidar com uma multidão de mulheres, ou com uma massa promíscua, o filósofo não consegue influenciá-las pela razão, exortando-as à reverência, à piedade, à fé; não; faz-se necessário o medo religioso, e este medo não pode ser criado sem mitos e maravilhas. Porque trovões, escudos, tridentes, archotes, cobras, lanças, tirsos - (armas dos deuses) - são mitos, e isto em toda a velha mitologia.  Mas os fundadores de estados deram sua sanção a essas coisas, como a papões que amedrontam os espíritos simples. E como esta é a natureza da mitologia, e como ela tem seu lugar no plano da vida social bem como na história dos fatos reais, os antigos agarravam-se aos seus sistemas de educação de crianças e aplicavam-nos aos homens de idade madura; e por meio da poesia supunham poder satisfatoriamente disciplinar todos os períodos da vida. Mas agora, depois de longo tempo, a escrita da história e da filosofia vieram para frente. A filosofia, entretanto, é coisa para poucos, ao passo que a poesia é própria para as massas."
               As morais, portanto, passaram a ser apoiadas pelas sanções religiosas, porque o mistério e o sobrenatural fornecem um suporte que por si mesmas não possuem as coisas empiricamente conhecidas e geneticamente compreendidas; os homens são mais facilmente governados pela imaginação do que pela ciência. Mas seria essa utilidade moral a fonte ou a origem da religião? 
Nicéas Romeo Zanchett 

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