Não podemos julgar uma civilização pelos simples fragmentos que se salvaram do naufrágio. Esses fragmentos são sobretudo litúrgicos, mágicos e comerciais. Seja por acidente, seja por pobreza cultural, a Babilônia, bem como a Assíria e a Pérsia, pouco nos legaram em literatura, em comparação com o Egito e a Palestina; o que dela recebemos confina-se ao campo comercial e às leis.
Os babilônios escreviam em cuneiforme, sobre tabletas de argila mole, com um estilete ou lápis apontado em forma de cunha, ou prisma triangular; depois secavam-nas e coziam-nas, obtendo assim duráveis manuscritos de tijolo. Se o escrito era uma carta, polvilhavam-na e colocavam-na em envelope também de argila, sempre marcado com o selo do remetente. Tabletas em vasos classificados e dispostos em prateleiras enchiam numerosas bibliotecas nos templos e palácios da babilônia. Essas livrarias perderam-se; mas uma das maiores, a de Borsippa, foi copiada e conservada na biblioteca de Assurbanípal, cujas 30 mil tabletas foram a principal fonte dos nossos conhecimentos sobre esse admirável povo.
A decifração da língua babilônia quebrou a cabeça dos estudiosos durante séculos, mas em 1802 Georg Grotefend, professor de grego na Universidade de Gottingen, expôs à Academia dessa cidade os seus trabalhos.
Depois dessa publicação, tudo parecia parado e esquecido; mas em 1835, quando apareceu Henry Rawlinson, diplomata inglês a serviço da Pérsia, e desconhecedor dos trabalhos de Grotefend, igualmente leu os nomes de Histaspes, dario e Xerxes numa incrição em Velho Persa, derivada do cuneiforme babilônico; e com essa base conseguiu decifrar o documento inteiro. Mas aquilo não era babilônico; Rawlinson teria, como Champollion, de encontrar a sua Pedra de Roseta - alguma inscrição ao mesmo tempo em língua persa e babilônica. E finalmente encontrou nas montanhas da media: Dario I fizera gravar a memória das suas guerras e triunfos em três línguas - persa, babilônia e assíria.
Os babilônios não se interessavam por literatura; seus escritos eram um instrumento para facilitar os negócios. Apesar disso foram encontrados fábulas em verso, hinos divididos em linhas e estâncias; uns tantos versos profanos; rituais religiosos que pressagiavam o drama, embora não chegassem até ele; além de toneladas de historiografia. As crônicas oficiais memoravam a piedade e as conquistas dos reis, as vicissitudes de cada templo, e os acontecimentos notáveis da cidade.
Dose tabletas quebradas da biblioteca de Assurbanípal, hoje no Museu britânico, revelam a poesia épica da Mesopotâmia - A Epopéia de Gilgamesh. Como a Ilíada, é uma concreção de histórias soltas, algumas das quais revertendo à Suméria de 3.000 a.C.; ali se conta a história do Dilúvio.
Gilgamesh foi um lendário rei de Uruk ou Erech, descendente do Shamash-napisthtim que se salvou na arca e ficou imortal. Gilgamesh entra em cena como uma espécie de Adônis-Sansão - alto, macio, poderosamente belo e forte.
"Deus por dois terços
E um terço homem,
Ninguém iguala a forma do seu corpo...
Todas as coisas viu, esmo as dos confins da terra,
Tudo arrostou, tudo aprendeu;
Devassou todos os segredos
Através do manto que os esconde.
Viu tudo que era oculto
E o que era coberto descobriu
Dos tempos antes do dilúvio trouxe notícia;
Foi para muito longe
Dando-se a todos os trabalhos e azares;
Escreveu então numa pedra a história de sua obra."
Gilgamesh é um poema do quarto milênio antes de Cristo, que conta a epopéia do homem sumeriano. Ele é um herói - um terço homem e dois terços divino - que faz uma viagem em busca da vida eterna. Ele consegue, mas torna a perdê-la. Poema da criação, do dilúvio, da angústia humana e do dilema da razão em frente do inevitável. Tal como o homem moderno, Gilgamesh profanou a natureza ao matar o guardião da floresta. Nesse momento ele perdeu a parte divina e tornou-se um simples mortal.
Conta a história que há muitos e muitos anos, um homem príncipe, e assim aclamado na cidade de Uruk, onde nasceu. Lá, onde reinava a raça humana sob a morada de Anu, viveu e cresceu Gilgamesh, o príncipe. Seus poderes eram tão prodigiosos que encantava as crianças, subjugava as mulheres e dominava os homens. por isso, os varões roeram-se de inveja. E reunindo-se foram queixar-se aos deuses.
Os deuses levaram a queixa a Aruru e à grande Deusa, aquela que sabe produzir a semente do humano. Imploraram:
- "Somente tu, misericordiosa, que formaste Gilgamesh e toda a raça, saberás criar um novo ser com força igual, para que a nossa cidade santa tenha paz."
E para comprazer algumas divindades, que uniam seus pedidos aos pedidos dos varões, a divina Aruru fez do barro um novo ser, que foi saudado com o nome de Enkidu.
Esse novo ser era coberto de pelos, com uma formosa e áspera cabeleira. Era livre, tão livre que caminhava tranquilo nos desertos, comendo saborosas ervas com gazelas e bebendo água das fontes como gado.
Seu coração exultava quando estava junto rebanhos e se alegrava andando com as manadas. Era o protetor dos animais; e para afastar os caçadores, Enkidu desviava o curso dos rios, e para defender seus companheiros construía fossas cruzadas. Sua força só poderia ser igualada a uma uma das forças de Bel, o senhor da atmosfera, aquele que é deus do furacão.
Receosos, os caçadores começaram a se afastar daquela região, e já ninguém mais se aventurava a transpor as primeiras entradas do deserto.
Não tardou para que Gilgamesh tomasse conhecimento do que estava acontecendo. Certo da existência de um novo ser vivente no deserto, para atraí-lo, o príncipe usou uma armadilha.
Chamou uma sacerdotisa de Ishtar, iniciada na arte do amor, e amada dos deuses, propondo-lhe que seduzisse Enkidu. Esta, rápida como o vento, correu para o deserto levando sua arte.
Gilgamesh mandou que o caçador acompanhasse a sacerdotisa ao encontro com Enkidu:
"Ei-lo, mulher!
Abre teu cinto,
Descobre teus encantos
Para que ele te fareje!
Não hesites, apanhá-lo!
Quando ele te vir, há de apaixonar-se.
Abre então a tua veste para que ele se deite sobre ti!
Excita-lhe o êxtase, esse trabalho da mulher.
Então ele se tornará estranho aos seus animais,
Aos que nos campos cresceram com ele.
Seu peito se apertará contra o teu."
Ao vê-la, Enkidu, cujos cabelos parecia ramos de videira, no princípio ficou assombrado, mas depois foi dominado pela Filha do Prazer e a ela se uniu.
Então a sacerdotisa desapertou o cinto,
Desvendou seus encantos
Para que ele a farejasse.
Ela não hesitou, tomou-o,
Abriu as vestes para que ele a cobrisse,
E excitou nele o êxtase, trabalho da mulher.
Seu peito apertou contra o dela
E Enkidu esqueceu onde havia nascido.
Durante seis dias e sete noites Enkidu permanece com a mulher sagrada. Quando se cansa do prazer, procura seus amigos animais e, como não é reconhecido entristece-se. Muitas foram as vezes que Enkidu tentou ser recebido entre os companheiros, mas os seus joelhos o traíam e seu corpo ficava paralisado como a pedra. Por fim, vencido, Enkidu voltou para junto da mulher e sentou-se aos seus pés e ouviu dela: -"Tu és belo, Enkidu. Tu és um deus. És o rei dos desertos. O mais ágil dos reis. Porque não vais para Uru, a terra de Gilgamesh, aquele que pode fechar seus seus braços ao touro mais terrível? Porque a Filha do Prazer conhecia as artes para dominar e cativar, Enkidu ouviu a mulher e deixou-se conduzir. A sacerdotisa o censura dizendo: "Tu que és soberbo como um deus, por que vives entre os animais dos campos? Vem, vou conduzir-te a Uruk, onde está Glgamesh, cujo poder é supremo". Enkidu segue-a dizendo: "leva-me para onde está Gilgamesh. Lutarei com ele e demonstrarei minha força, para que os deuses e os maridos de agradem."
Durante aqueles dias, Gilgamesh viu em sonhos um homem de prodigiosa força que o vencia. Ao alvorecer o príncipe procurou sua mãe Ramabeli, que tudo sabia, e lhe confiou a sua inquietação.
Ramabeli confortou seu filho, revelando-lhe que o homem forte era Enkidu, o novo ser, e que isto significava a profunda amizade que os uniria.
E assim foi, pois quando Enkidu chegou ao palácio, Gilgamesh o recebeu como a um irmão.
Gilgamesh o vence, primeiro em força, depois em bondade; fê-lo sentar-se ao seu lado e deu-lhe um magnífico leito. Enkidu foi vestido com vestes reais. À esquerda do príncipe sentou-se em trono admirável, diante do qual os reis da terra se curvavam.
O os homens de |Uruck respeitaram e honraram aquele que era companheiro e amigo inseparável do príncipe.
Uma noite, Enkidu teve um sonho funesto: um ser crepuscular levava o seu corpo, por entre nuvens sombrias, à treva moradia de Nergal, de onde ninguém jamais voltara, tal como contavam os velhos magos.
Ao despertar Enkidu descreveu a sua visão dos infernos a Gilgamesh, e o príncipe, ansioso por conhecer os seus significados, encheu o pote de jade com leite e mel e o ofereceu a Shamash, o deus que ilumina todos os seres viventes.
Pareceu a Glgamesh que se revelava uma resposta que supôs divina, dizendo:
- Deves deixar o teu palácio, e ir combater Humbabá.
Em Uruk, contavam que morava além das montanhas de cedro um feros guardião chamado Humbabá.
Ramabeli, ao saber do projeto do filho, revestiu-se com seus ornamentos sagrados e subiu as sete escadarias do templo. lá, no centro do santuário, ante o fogo mantido com incenso oferecido a Shamash, ela apresentou suas súplicas de mãe:
- Shamash! Meu deus e deus da minha casa! Tu deste ao meu filho um coração que não dorme e permitiste que ele fosse tocado pela ambição. Eis que ele se prepara para ir lutar contra Humbabá. Por longínquos caminhos, ele enfrentará o desconhecido. Toma-o sob a tua proteção, ó meu deus! Shamash! Shamash! Meu deus e deus da minha casa!O povo de Uruk temeu pelo príncipe, mesmo os varões, que antes o invejavam, falaram dos perigos a que se expunha: Humbabá era um monstro horrendo, e para atingir as altas montanhas era preciso fazer uma jornada de muitas e muitas luas.
O dois amigos partem com destino ao reino de Humbabá.
Os perigos foram muitos; na viagem tiveram de enfrentar muitos animais selvagens. Lado a lado, sem descanso e sem medo, três zodíacos vividos, chegaram aos montes onde se erguia a insondável floresta; haviam verdes cedros na profundeza da verde floresta, domínio de Humbabá.
O monstro era mesmo terrível; sua voz era como uma tempestade; seu hálito desencadeava os ventos e sua floresta se fechava misteriosamente sobre o temerário que ousasse aproximar-se dali. Enkidu tentou deter seu companheiro, sussurrando-lhe:
- Não entres! Minhas mãos estão trêmulas e minhas costas pesam! Não entres!
Mas Gilgamesh já não ouvia mais, pois - maravilha - em deliciosas sombras e luminosos caminhos, abrindo-se em mais cedros perfumados, santuário de deuses e reino de Inaná, a floresta surgia ante seus olhos deslumbrados.
Gilgamesh, no entanto, lançou seu desafio à terra, chamando pelo horrendo monstro, cuja presença o guardião Silêncio encobria. E para armar suas forças, Gilgamesh celebrou os ritos guerreiros de sua raça; cravou um círculo fundo na escura terra e ofertou 12 grãos do mais perfeito cereal. Assim ele consagrou aos mortos, entoando pungente e fúnebre lamentação que encheu os ares. Depois, galgou o cimo mais alto da mais alta montanha, ali invocando Shamash:
- Ó, deus! Tu que conduzes o dia por sobre a larga terra! Tu, senhor, que permitiste que aqui chegássemos! Shamash! Senhor! Manda um sonho a Enkidu!
Então, quando o sono de Enkidu já percorrera a metade da noite, ele acordou, as vestes umedecidas pelo terror. E vendo Gilgamesh curvado sobre ele, lamentou-se:
- Quem me acordou! Quem me tocou? Por aqui passou um deus! Minha carne ferida! Os céus clamaram e a terra gemeu! Na treva uma luz brilhou. Mas ela se fez fogo e a morte feita escura chuva transformou o fogo em negras cinzas!
Mais de uma vez, como os homens comuns, Gilgamesh interpretou o sonho através das nuvens criadas pela sua desmedida ambição. Viu o sonho como um sinal de vitória no combate e a ele se atirou, chamando a si as forças telúricas para que o protegessem. E os elementos se fizeram vivos: o furacão, o vento do norte, os ares glaciais e o turbilhão.
Nove ventos vieram do horizonte, desvendando a face do Guardião. Humbabá não podia recuar e não podia avançar.
Tendo-o sob o seu domínio, Gilgamesh teve ímpetos de poupá-lo, pois que de suas mãos fora feita toda a classe de portentos. Mas Enkidu, o que tinha sido tocado pelo amore pela morte, lembrou ao príncipe o perigo extremo a que se expunha deixando o monstro viver.
Seguindo o conselho dado pelo amigo, Gilgamesh, vencendo o seu primeiro impulso, decepou de um só golpe a monstruosa cabeça, tomando, então, posse da montanha.
Dessa forma foi destruído o santuário de Inaná, a Grande, e Gilgamesh atraiu sobre si a maldição de Bel, que é senhor de toda a natureza, pois o orgulho não lhe permitia sentir a desordem desencadeada e a blasfema profanação.
Voltam triunfantes e felizes. Gilgamesh desfez o emaranhado dos cabelos, retira seu arnês de guerra, veste-se de branco, enfeita-se com real insígnia e põe o diadema. E assim, engrandecido, sentindo-se purificado, foi visto do alto pela insaciável deusa Ishtar, tomada de amor, ergue para ele os seus grandes olhos e diz:
Durante aqueles dias, Gilgamesh viu em sonhos um homem de prodigiosa força que o vencia. Ao alvorecer o príncipe procurou sua mãe Ramabeli, que tudo sabia, e lhe confiou a sua inquietação.
Ramabeli confortou seu filho, revelando-lhe que o homem forte era Enkidu, o novo ser, e que isto significava a profunda amizade que os uniria.
E assim foi, pois quando Enkidu chegou ao palácio, Gilgamesh o recebeu como a um irmão.
Gilgamesh o vence, primeiro em força, depois em bondade; fê-lo sentar-se ao seu lado e deu-lhe um magnífico leito. Enkidu foi vestido com vestes reais. À esquerda do príncipe sentou-se em trono admirável, diante do qual os reis da terra se curvavam.
O os homens de |Uruck respeitaram e honraram aquele que era companheiro e amigo inseparável do príncipe.
Uma noite, Enkidu teve um sonho funesto: um ser crepuscular levava o seu corpo, por entre nuvens sombrias, à treva moradia de Nergal, de onde ninguém jamais voltara, tal como contavam os velhos magos.
Ao despertar Enkidu descreveu a sua visão dos infernos a Gilgamesh, e o príncipe, ansioso por conhecer os seus significados, encheu o pote de jade com leite e mel e o ofereceu a Shamash, o deus que ilumina todos os seres viventes.
Pareceu a Glgamesh que se revelava uma resposta que supôs divina, dizendo:
- Deves deixar o teu palácio, e ir combater Humbabá.
Em Uruk, contavam que morava além das montanhas de cedro um feros guardião chamado Humbabá.
Ramabeli, ao saber do projeto do filho, revestiu-se com seus ornamentos sagrados e subiu as sete escadarias do templo. lá, no centro do santuário, ante o fogo mantido com incenso oferecido a Shamash, ela apresentou suas súplicas de mãe:
- Shamash! Meu deus e deus da minha casa! Tu deste ao meu filho um coração que não dorme e permitiste que ele fosse tocado pela ambição. Eis que ele se prepara para ir lutar contra Humbabá. Por longínquos caminhos, ele enfrentará o desconhecido. Toma-o sob a tua proteção, ó meu deus! Shamash! Shamash! Meu deus e deus da minha casa!O povo de Uruk temeu pelo príncipe, mesmo os varões, que antes o invejavam, falaram dos perigos a que se expunha: Humbabá era um monstro horrendo, e para atingir as altas montanhas era preciso fazer uma jornada de muitas e muitas luas.
O dois amigos partem com destino ao reino de Humbabá.
Os perigos foram muitos; na viagem tiveram de enfrentar muitos animais selvagens. Lado a lado, sem descanso e sem medo, três zodíacos vividos, chegaram aos montes onde se erguia a insondável floresta; haviam verdes cedros na profundeza da verde floresta, domínio de Humbabá.
O monstro era mesmo terrível; sua voz era como uma tempestade; seu hálito desencadeava os ventos e sua floresta se fechava misteriosamente sobre o temerário que ousasse aproximar-se dali. Enkidu tentou deter seu companheiro, sussurrando-lhe:
- Não entres! Minhas mãos estão trêmulas e minhas costas pesam! Não entres!
Mas Gilgamesh já não ouvia mais, pois - maravilha - em deliciosas sombras e luminosos caminhos, abrindo-se em mais cedros perfumados, santuário de deuses e reino de Inaná, a floresta surgia ante seus olhos deslumbrados.
Gilgamesh, no entanto, lançou seu desafio à terra, chamando pelo horrendo monstro, cuja presença o guardião Silêncio encobria. E para armar suas forças, Gilgamesh celebrou os ritos guerreiros de sua raça; cravou um círculo fundo na escura terra e ofertou 12 grãos do mais perfeito cereal. Assim ele consagrou aos mortos, entoando pungente e fúnebre lamentação que encheu os ares. Depois, galgou o cimo mais alto da mais alta montanha, ali invocando Shamash:
- Ó, deus! Tu que conduzes o dia por sobre a larga terra! Tu, senhor, que permitiste que aqui chegássemos! Shamash! Senhor! Manda um sonho a Enkidu!
Então, quando o sono de Enkidu já percorrera a metade da noite, ele acordou, as vestes umedecidas pelo terror. E vendo Gilgamesh curvado sobre ele, lamentou-se:
- Quem me acordou! Quem me tocou? Por aqui passou um deus! Minha carne ferida! Os céus clamaram e a terra gemeu! Na treva uma luz brilhou. Mas ela se fez fogo e a morte feita escura chuva transformou o fogo em negras cinzas!
Mais de uma vez, como os homens comuns, Gilgamesh interpretou o sonho através das nuvens criadas pela sua desmedida ambição. Viu o sonho como um sinal de vitória no combate e a ele se atirou, chamando a si as forças telúricas para que o protegessem. E os elementos se fizeram vivos: o furacão, o vento do norte, os ares glaciais e o turbilhão.
Nove ventos vieram do horizonte, desvendando a face do Guardião. Humbabá não podia recuar e não podia avançar.
Tendo-o sob o seu domínio, Gilgamesh teve ímpetos de poupá-lo, pois que de suas mãos fora feita toda a classe de portentos. Mas Enkidu, o que tinha sido tocado pelo amore pela morte, lembrou ao príncipe o perigo extremo a que se expunha deixando o monstro viver.
Seguindo o conselho dado pelo amigo, Gilgamesh, vencendo o seu primeiro impulso, decepou de um só golpe a monstruosa cabeça, tomando, então, posse da montanha.
Dessa forma foi destruído o santuário de Inaná, a Grande, e Gilgamesh atraiu sobre si a maldição de Bel, que é senhor de toda a natureza, pois o orgulho não lhe permitia sentir a desordem desencadeada e a blasfema profanação.
Voltam triunfantes e felizes. Gilgamesh desfez o emaranhado dos cabelos, retira seu arnês de guerra, veste-se de branco, enfeita-se com real insígnia e põe o diadema. E assim, engrandecido, sentindo-se purificado, foi visto do alto pela insaciável deusa Ishtar, tomada de amor, ergue para ele os seus grandes olhos e diz:
Gilgamesh! Vem e sê meu amante!
Teu amor, dá-me como presente; tu serás meu esposo e eu serei tua esposa.
Eu te porei numa carruagem de lápis-lazúli e ouro, com rodas douradas, montadas em oxis;
Serás puxado por grandes leões, e entrarás em nossa casa dentro do incenso do cedro...
Toda a terra perto do mar abraçará teus pés, reis se curvarão diante de ti, e te trarão, como tributos, os dons das montanhas e das planícies.
Os olhos de Ishtar eram belos e misteriosos como o segredo da noite, mas a deusa era inconstante e seu amor podia atrair infortúnios sobre o amado e amante. Gilgamesh repele-a, e recorda o duro fado por ela infligido a diversos amantes, inclusive Tammuz, um falcão, um garanhão, um leão e um jardineiro. E disse-lhe: "Tu me amas agora, depois tu me baterás, como fizeste a este. Rejeitada e irada Ishtar pode ao grande deus Anu que crie um touro selvagem capaz de matar Gilgamesh. Mas Anu recusa-se e repele-a: "Não te calarás, nem agora que Gilgamesh enumerou tuas infidelidades e ignominias? "
Revoltada Ishtar ameaça Anu dizendo que, se não a atendesse, iria suspender em todo o mundo o desejo carnal, e assim destruiria todas as coisas vivas.
- Ó divino pai! Não ignoro quão imenso é teu poder e se te tenho servido cada noite, ouve a minha súplica! Gilgamesh ousou me ofender! Temerário, ele revelou meus segredos de desígnios! Castiga o imprudente! Que o touro celeste o ataque multiplicando a força com que ofendeu a tua filha!
Anu, então, cede e cria o feroz touro; Ao vê-lo, Enkidu vem logo em socorro do amigo. Célere, ele colhe o touro pela cauda e, girando-o acima da cabeça, lança-o contra a dura terra. Ainda irado, Enkidu vislumbra Ishtar sobre os muros do Uruk, lamentando-se diante das suas sacerdotisas. Então, estraçalhando o animal vindo do céu, volta-e para as muralhas da cidade santa e lançou a cabeça do touro sobre a sagrada face da deusa. Gilgamesh rejubila-se, orgulhoso, porém, tomado de tardios receios, fez escorrer um denso óleo dos cornos do touro e, ali mesmo, o Ofertou a Lugalbanda, o que mora na raiz do reino vegetal. Depois lavou as mãos nas águas sacras, e iniciou com Enkidu a volta ao reino de Uruk. Pelas estradas ecoavam as exclamações dos povos agradecidos:
-" Tu brilhas entre todos os homens, Gilgamesh! brilha entre os príncipes da terra! "
Quando chegam ao palácio de Uruk, Gilgamesh narrou seus feitos em reunião solene. Mas Ramabeli, a que tudo sabia, mãe do soberbo por quem se inquietara tantas luas, do seu orgulho desmedido muito se compadeceu.
Gilgamesh, porém, ao receber as homenagens, mal se advertia da piedade materna. No entanto, Ishtar, a divina tão duramente ultrajada, não dormia. E já um novo castigo a deusa engendrara.
Por suas artes mágicas, Enkidu foi envolvido por nuvens e um horrível mal apareceu nele. Durante o curso de 12 funestas noites, sua poderosa natureza lutou contra a morte, mas foi vencido. No décimo-terceiro dia, depois de mais uma noite vigilante, Enkidu expirou nos braços do irmão e companheiro amado Gilgamesh, o invencível príncipe guerreiro. Então, o soberbo lamentou sua sorte:
- Amigo! Irmão! Tigre dos desertos! Tu que comigo desceste a todos os abismos e comigo subiste os mais altos montes, a que te submetes? O que te mantém como sombra do que eras e não permite que me respondas?
Em desespero, ele respirou sobre o amigo, procurando ainda escutar-lhe o coração. Tocou-lhe o peito com ternura extrema. Mas Enkidu estava morto. E sentindo-se perdido, Gilgamesh fugiu do palácio, pois a morte também estava dentro dele, pois já não era mais imortal.
Atravessou planícies e vales. E por onde passava, erguiam-se as cruéis indagações:
- Por que a visão da morte destruiu a tua força? Por que ela elidiu a tua face? Partiu-se o teu coração e transformados foram os teus traços. O terror corroeu as tuas entranhas. A dor e a tristeza plasmaram outra face!
E Gilgamesh, fugindo lamentava-se:
- Eu fujo pelos campos pois Enkidu, amigo e irmão de armas, tigre dos desertos, que comigo destroçou os leões e enfrentou todas as provas, foi confirmado em seu destino. Foram 13 as noites e 13 foram os dias que sobre ele derramei meu pranto. Eu fujo da morte. Meu amigo, que jamais foi igual à lama da sua origem, despareceu. E eu, que me deitei ao seu lado, sou incapaz de construí-lo outra vez!
Gilgamesh medita sobre o mistério da morte. Ninguém escaparia, então, àquela dolorosa fatalidade? E o medo abriu caminhos para os pés de Gilgamesh.
Depois de muito meditar, tomou conhecimento de que um homem chamado Shamash-napishtim devia saber o segredo da imortalidade. Gilgamesh resolve procurá-lo, e achá-lo, nem que tenha de viajar o mundo inteiro. O caminho que toma leva a uma montanha guardada por dois gigantes, cujas cabeças tocam o céu e cujos peitos chegam ao Hades. Mas eles o deixam passar, e Gilgamesh caminha doze milhas por um túnel escuro. Emerge na praia dum grande mar e vê sobre as águas o trono de Sabitu, a deusa virgem dos oceanos. Chama-a para que venha ajudá-lo a transpor as águas; "se não vieres, se eu não puder fazer isso, deitar-me-ei na terra e morrerei." Sabitu, apiedada, permite-lhe que atravesse as águas em quarenta dias de tempestade, até alcançar a Ilha Feliz, onde vive Shamash-napishtim, o imortal. Guilgamesh pede-lhe o segredo da imortalidade e Shamash-napishtim responde com a longa história do dilúvio, e de como os deuses, arrefecendo-se da ira destruidora, fizeram-no imortal por ter ele salvo a humanidade. E oferece a Gilgamesh uma planta cujo fruto rejuvenesce a quem o come; e Gilgamesh, feliz, volta da sua longa jornada. Mas havendo parado no caminho para banhar-se, uma serpente lhe rouba a planta. (A serpente era adorada por muitos povos como símbolo da imortalidade, por causa do seu aparente poder de escapar à morte com a mudança da pele.)
Aquele lugar de delícias era a morada de Sabitu, a que reina na extremidade da terra, onde começam as águas.
Ao ver Gilgamesh vestido de fera - que para os deuses a roupagem dos mortais é feita do íntimo do humano - a deusa oculta-se rapidamente em sua morada.
Mas o desvairado, Gilgamesh ameaçou destruir os quícios (dobradiças) e arrombar a porta que se fechava. Diante de tal audácia e furor, a deusa consentiu em ouvi-lo. Mas, ao saber da ambição do príncipe, o advertiu:
- Porque percorre terras e mares? A vida tal como a procuramos não existe para o homem. Quando os deuses criaram o ser humano,deram-lhe a vida, mas retiveram nas mãos a eternidade. Satisfaz teu ventre! Rejubila-te nas noites e nos dias, e cada manhã será de festa! Que as tuas vestes alvas e a tua fronte clara! Lava-te nas águas e considera quão miúdo é aquilo que a tua mão pode conter. Assim a tua amada se alegrará demorando em teu peito! Quanto à eternidade, jamais encontrarás o caminho, pois nunca - desde os tempos mais recuados - pés humanos atravessaram o grande mar. Difícil é andar sobre as suas águas e impossível nelas abrir rota precisa. Secretas e profundas são as águas da vida eterna! Como tu atravessarias os escuros mares se a boca dos abismos espera e traga o ser tantas vezes quantas a vida na carne se lhe conceder? - Mas, obstinado, Gilgamesh implora à deusa e tanto suplica que dele a Sabitu se apieda, aconselhando-o a procurar Urshanabi, barqueiro do magnânimo Utnapistim, intrépido nauta da mais atroz navegação.
E indo à sua procura, Gilgamesh o encontrou. E ele lhe pediu 120 toras de madeira resistente para construir um barco. E depois de construí-lo, partiram.
Por muitas luas eles enfrentaram o mar revolto até atingir as águas da morte que cercam o paraíso de Utnapistim, impedindo qualquer aproximação. Mas Urshanabi, conhecendo o perigo, conseguiu evitar o contato mortal dos galhos e longas varas que eram ciladas para os incautos. Na centésima vara, a passagem foi aberta.
E mostrou-se Utnapistim em toda a sua glória imóvel, na serenidade quieta dos que gozam a vida eterna.
Em face da ânsia de imortalidade que o príncipe experimentava, o imortal patriarca assim falou:
- Foi por homens como tu que trabalhamos para construir a Grande Casa? Para criaturas semelhantes, os montes e vales brilham a cada aurora? A forma menor só escapa à prisão da substância para se integrar no sentido que criou. A voz foi dada ao ser humano para que cante em júbilo com os deuses, a cada novo dia.
Nessa tarefa, que parece mínima, participam do divino, e preservada se faz a tarefa dos deuses. Homem algum, ser criado na forma, jamais pode vencer a própria morte. Samu, o sentido divino, escreve todos os destinos, mas o Annunaki, demônios engenhosos, dificultam o caminho verdadeiro que leva até os céus. Eis porque não e dado aos mortais criados adivinhar, em cada união vital, os seus momentos finais. Se Utnapistim se tornou imortal e venceu a lei da morte transpondo o castigo do dilúvio imposto àqueles que viveram presos aos seus próprios e únicos desejos, foi por benevolência do deus depositário desse privilégio, que no patriarca reconheceu apenas o desejo santo de preservar em vida os seres dos dois reinos. Imensa e poderosa é a força da lei e nela eu te proponho apenas uma prova, ó príncipe: -se o sono é a imagem da morte, que tu, herói, não durmas durante seis dias e seis noites.
A assim foi que Gilgamesh tentou manter-se vigilante, mas dias antes do prazo prescrito o seu corpo oscilou como a árvore sob os golpes de um machado. E o patriarca, ante a confirmação de sua fraqueza, novamente lhe falou:
- Tu te achavas um forte, desejoso de vida eterna, mas o sono, como um furacão, soprou sobre teu corpo.
E tendo assim falado, impassível se calou. Então o príncipe desesperado compreendeu que só lhe restava retornar a Uruk, convencido da inutilidade de sua viagem.
Mas, ao vê-lo quase sucumbido, a mulher de Utnapistim, compadecida, revelou a Gilgamesh o maravilhoso segredo: no fundo dos mares, nos profundos abismos, desabrocha uma planta oculta e delicada. Recoberta de espinhos que ferem e cortam, assim ela se defende daqueles que tentam recolhe-la em seu mistério. Seu secreto nome diz que o velho, comendo-a, retorna à mocidade e que o jovem conserva eterna a juventude que ela contém.
Ao ouvir essa informação, o príncipe animou-se e partiu agradecido.
Urshanabi levou-o através do mar até o horizonte mais distante. E lá, onde o céu e as águas se confundem brandamente, Gilgamesh, atando pesadas pedras aos pés, atirou-se e submergiu nas remotas profundezas.
Com cuidados extremos, nas mãos que sangravam, o homem colheu a misteriosa planta que encontrou. Enfim, a imortalidade era dele!
Assim, Gilgamesh subiu à barca do intrépido barqueiro e quando o barco chegou à margem, despediu-se agradecido, inciando, tranquilo, em pleno regozijo, outro caminho.
Aconteceu, no entanto, que estando Gilgamesh no meio do caminho de volta, deparou com uma fonte que manava dentre pedras e, detendo-se, ele se curvou para saciar a sede. E ao se inclinar - incomparável maravilha - pode ver tesouros inauditos a rebrilhar no fundo.
Então depôs delicadamente à margem das águas, a planta que colhera nos abismos tenebrosos. E mergulhou na água em busca da miragem deslumbrante, tentando alcançar as formas coloridas que a ele pareciam um tesouro.
E ainda na água viu uma serpente azul, atraída pelo odos da planta mágica, aproximar-se pela terra, rastejando até a pedra onde a colocara, e em pássaro metamorfosear-se ao tocá-la. E colhendo-a velozmente em seu bico, fugir para os céus com o precioso ramo.
Emergindo, Gilgamesh atirou-se à terra e, assistindo a ave distanciar-se, impotente, soluçou:
- Meus braços estão cansados. O sangue em meu corpo já circula lento. Nunca mais poderei realizar ação maior? Ó deus, apiedai-vos de mim!
Em prantos ainda, depois de muito errar, chegou ao seu reino e mais odiosa então lhe pareceu a morte porque Ramabeli, sua mãe, já não mais vivia e nem mesmo viviam seus velhos servidores.
Fechado em seu palácio, sua única companheira era a tristeza. E o nome de Enkidu, irmão amado, era por ele repetido mil vezes em voz baixa, nas noites de solidão. Uma tarde, por fim, no salão em que escondia a sua dor, vislumbrou na escuridão que o envolvia, uma sombra, imagem do amigo que se fora.
E a voz de Enkidu, gemendo, o advertiu:
- Gilgamesh! Irmão! Agora estou no reino de Nerga! Em treva permanente me encontro aprisionado e nem as feras, os animais cruéis, que juntos combatemos, gemiam como eu, quando feridos. O caminho para os céus ou para os infernos se inicia no coração do homem. As paixões do homem alimentam a serpente que o sufoca depois. Essa é a lei. Se de mim, que sou sombra, se alar um lume que através de ti, em espiral, alcance o céu, sete vezes por sete luas, perdoado eu estarei. Tu foste o meu irmão e meu exemplo no orgulho do clarão que me cegou! Alça-te, amigo! Transmuta as injúrias, os ódios e os temores! Transforma teus sentimentos e memórias em luz que ilumine os que passam antes de ti e os que virão depois. Este é o caminho...
Gilgamesh indaga a situação dos mortos. Enkidu responde: -"Não posso dizer; se eu descerrasse a terra diante dos teus olhos, se eu dissesse o que vi, o terror te empolgaria e tu cairias. Mas Gilgamesh, símbolo dessa heróica estupidez chamada filosofia, iniste na pergunta. - "Sim, o terror me empolgará, eu cairei por terra - mas dize! Enkidu, então, descreve as misérias do hades - e com essa nota triste o fragmento da epopeia termina.
A sombra dissipou-se. E desde então Gilgamesh tentou, no silêncio, alcançar a distância que une os céus à terra. Muitas vezes o sol brilhou. Até que pudesse perceber a vida que há na terra como na água, no fogo e no ar. Só depois, o homem ouviu, sereno e sem cuidados, o pássaro que canta e canta oculto, em cada ser.
E Gilgamesh, fugindo lamentava-se:
- Eu fujo pelos campos pois Enkidu, amigo e irmão de armas, tigre dos desertos, que comigo destroçou os leões e enfrentou todas as provas, foi confirmado em seu destino. Foram 13 as noites e 13 foram os dias que sobre ele derramei meu pranto. Eu fujo da morte. Meu amigo, que jamais foi igual à lama da sua origem, despareceu. E eu, que me deitei ao seu lado, sou incapaz de construí-lo outra vez!
Gilgamesh medita sobre o mistério da morte. Ninguém escaparia, então, àquela dolorosa fatalidade? E o medo abriu caminhos para os pés de Gilgamesh.
Depois de muito meditar, tomou conhecimento de que um homem chamado Shamash-napishtim devia saber o segredo da imortalidade. Gilgamesh resolve procurá-lo, e achá-lo, nem que tenha de viajar o mundo inteiro. O caminho que toma leva a uma montanha guardada por dois gigantes, cujas cabeças tocam o céu e cujos peitos chegam ao Hades. Mas eles o deixam passar, e Gilgamesh caminha doze milhas por um túnel escuro. Emerge na praia dum grande mar e vê sobre as águas o trono de Sabitu, a deusa virgem dos oceanos. Chama-a para que venha ajudá-lo a transpor as águas; "se não vieres, se eu não puder fazer isso, deitar-me-ei na terra e morrerei." Sabitu, apiedada, permite-lhe que atravesse as águas em quarenta dias de tempestade, até alcançar a Ilha Feliz, onde vive Shamash-napishtim, o imortal. Guilgamesh pede-lhe o segredo da imortalidade e Shamash-napishtim responde com a longa história do dilúvio, e de como os deuses, arrefecendo-se da ira destruidora, fizeram-no imortal por ter ele salvo a humanidade. E oferece a Gilgamesh uma planta cujo fruto rejuvenesce a quem o come; e Gilgamesh, feliz, volta da sua longa jornada. Mas havendo parado no caminho para banhar-se, uma serpente lhe rouba a planta. (A serpente era adorada por muitos povos como símbolo da imortalidade, por causa do seu aparente poder de escapar à morte com a mudança da pele.)
Aquele lugar de delícias era a morada de Sabitu, a que reina na extremidade da terra, onde começam as águas.
Ao ver Gilgamesh vestido de fera - que para os deuses a roupagem dos mortais é feita do íntimo do humano - a deusa oculta-se rapidamente em sua morada.
Mas o desvairado, Gilgamesh ameaçou destruir os quícios (dobradiças) e arrombar a porta que se fechava. Diante de tal audácia e furor, a deusa consentiu em ouvi-lo. Mas, ao saber da ambição do príncipe, o advertiu:
- Porque percorre terras e mares? A vida tal como a procuramos não existe para o homem. Quando os deuses criaram o ser humano,deram-lhe a vida, mas retiveram nas mãos a eternidade. Satisfaz teu ventre! Rejubila-te nas noites e nos dias, e cada manhã será de festa! Que as tuas vestes alvas e a tua fronte clara! Lava-te nas águas e considera quão miúdo é aquilo que a tua mão pode conter. Assim a tua amada se alegrará demorando em teu peito! Quanto à eternidade, jamais encontrarás o caminho, pois nunca - desde os tempos mais recuados - pés humanos atravessaram o grande mar. Difícil é andar sobre as suas águas e impossível nelas abrir rota precisa. Secretas e profundas são as águas da vida eterna! Como tu atravessarias os escuros mares se a boca dos abismos espera e traga o ser tantas vezes quantas a vida na carne se lhe conceder? - Mas, obstinado, Gilgamesh implora à deusa e tanto suplica que dele a Sabitu se apieda, aconselhando-o a procurar Urshanabi, barqueiro do magnânimo Utnapistim, intrépido nauta da mais atroz navegação.
E indo à sua procura, Gilgamesh o encontrou. E ele lhe pediu 120 toras de madeira resistente para construir um barco. E depois de construí-lo, partiram.
Por muitas luas eles enfrentaram o mar revolto até atingir as águas da morte que cercam o paraíso de Utnapistim, impedindo qualquer aproximação. Mas Urshanabi, conhecendo o perigo, conseguiu evitar o contato mortal dos galhos e longas varas que eram ciladas para os incautos. Na centésima vara, a passagem foi aberta.
E mostrou-se Utnapistim em toda a sua glória imóvel, na serenidade quieta dos que gozam a vida eterna.
Em face da ânsia de imortalidade que o príncipe experimentava, o imortal patriarca assim falou:
- Foi por homens como tu que trabalhamos para construir a Grande Casa? Para criaturas semelhantes, os montes e vales brilham a cada aurora? A forma menor só escapa à prisão da substância para se integrar no sentido que criou. A voz foi dada ao ser humano para que cante em júbilo com os deuses, a cada novo dia.
Nessa tarefa, que parece mínima, participam do divino, e preservada se faz a tarefa dos deuses. Homem algum, ser criado na forma, jamais pode vencer a própria morte. Samu, o sentido divino, escreve todos os destinos, mas o Annunaki, demônios engenhosos, dificultam o caminho verdadeiro que leva até os céus. Eis porque não e dado aos mortais criados adivinhar, em cada união vital, os seus momentos finais. Se Utnapistim se tornou imortal e venceu a lei da morte transpondo o castigo do dilúvio imposto àqueles que viveram presos aos seus próprios e únicos desejos, foi por benevolência do deus depositário desse privilégio, que no patriarca reconheceu apenas o desejo santo de preservar em vida os seres dos dois reinos. Imensa e poderosa é a força da lei e nela eu te proponho apenas uma prova, ó príncipe: -se o sono é a imagem da morte, que tu, herói, não durmas durante seis dias e seis noites.
A assim foi que Gilgamesh tentou manter-se vigilante, mas dias antes do prazo prescrito o seu corpo oscilou como a árvore sob os golpes de um machado. E o patriarca, ante a confirmação de sua fraqueza, novamente lhe falou:
- Tu te achavas um forte, desejoso de vida eterna, mas o sono, como um furacão, soprou sobre teu corpo.
E tendo assim falado, impassível se calou. Então o príncipe desesperado compreendeu que só lhe restava retornar a Uruk, convencido da inutilidade de sua viagem.
Mas, ao vê-lo quase sucumbido, a mulher de Utnapistim, compadecida, revelou a Gilgamesh o maravilhoso segredo: no fundo dos mares, nos profundos abismos, desabrocha uma planta oculta e delicada. Recoberta de espinhos que ferem e cortam, assim ela se defende daqueles que tentam recolhe-la em seu mistério. Seu secreto nome diz que o velho, comendo-a, retorna à mocidade e que o jovem conserva eterna a juventude que ela contém.
Ao ouvir essa informação, o príncipe animou-se e partiu agradecido.
Urshanabi levou-o através do mar até o horizonte mais distante. E lá, onde o céu e as águas se confundem brandamente, Gilgamesh, atando pesadas pedras aos pés, atirou-se e submergiu nas remotas profundezas.
Com cuidados extremos, nas mãos que sangravam, o homem colheu a misteriosa planta que encontrou. Enfim, a imortalidade era dele!
Assim, Gilgamesh subiu à barca do intrépido barqueiro e quando o barco chegou à margem, despediu-se agradecido, inciando, tranquilo, em pleno regozijo, outro caminho.
Aconteceu, no entanto, que estando Gilgamesh no meio do caminho de volta, deparou com uma fonte que manava dentre pedras e, detendo-se, ele se curvou para saciar a sede. E ao se inclinar - incomparável maravilha - pode ver tesouros inauditos a rebrilhar no fundo.
Então depôs delicadamente à margem das águas, a planta que colhera nos abismos tenebrosos. E mergulhou na água em busca da miragem deslumbrante, tentando alcançar as formas coloridas que a ele pareciam um tesouro.
E ainda na água viu uma serpente azul, atraída pelo odos da planta mágica, aproximar-se pela terra, rastejando até a pedra onde a colocara, e em pássaro metamorfosear-se ao tocá-la. E colhendo-a velozmente em seu bico, fugir para os céus com o precioso ramo.
Emergindo, Gilgamesh atirou-se à terra e, assistindo a ave distanciar-se, impotente, soluçou:
- Meus braços estão cansados. O sangue em meu corpo já circula lento. Nunca mais poderei realizar ação maior? Ó deus, apiedai-vos de mim!
Em prantos ainda, depois de muito errar, chegou ao seu reino e mais odiosa então lhe pareceu a morte porque Ramabeli, sua mãe, já não mais vivia e nem mesmo viviam seus velhos servidores.
Fechado em seu palácio, sua única companheira era a tristeza. E o nome de Enkidu, irmão amado, era por ele repetido mil vezes em voz baixa, nas noites de solidão. Uma tarde, por fim, no salão em que escondia a sua dor, vislumbrou na escuridão que o envolvia, uma sombra, imagem do amigo que se fora.
E a voz de Enkidu, gemendo, o advertiu:
- Gilgamesh! Irmão! Agora estou no reino de Nerga! Em treva permanente me encontro aprisionado e nem as feras, os animais cruéis, que juntos combatemos, gemiam como eu, quando feridos. O caminho para os céus ou para os infernos se inicia no coração do homem. As paixões do homem alimentam a serpente que o sufoca depois. Essa é a lei. Se de mim, que sou sombra, se alar um lume que através de ti, em espiral, alcance o céu, sete vezes por sete luas, perdoado eu estarei. Tu foste o meu irmão e meu exemplo no orgulho do clarão que me cegou! Alça-te, amigo! Transmuta as injúrias, os ódios e os temores! Transforma teus sentimentos e memórias em luz que ilumine os que passam antes de ti e os que virão depois. Este é o caminho...
Gilgamesh indaga a situação dos mortos. Enkidu responde: -"Não posso dizer; se eu descerrasse a terra diante dos teus olhos, se eu dissesse o que vi, o terror te empolgaria e tu cairias. Mas Gilgamesh, símbolo dessa heróica estupidez chamada filosofia, iniste na pergunta. - "Sim, o terror me empolgará, eu cairei por terra - mas dize! Enkidu, então, descreve as misérias do hades - e com essa nota triste o fragmento da epopeia termina.
A sombra dissipou-se. E desde então Gilgamesh tentou, no silêncio, alcançar a distância que une os céus à terra. Muitas vezes o sol brilhou. Até que pudesse perceber a vida que há na terra como na água, no fogo e no ar. Só depois, o homem ouviu, sereno e sem cuidados, o pássaro que canta e canta oculto, em cada ser.
NOTA FINAL
A história de Gilgamesh é quase a única amostra pela qual podemos fazer ideia da literatura babilônica. Que na babilônia um agudo senso estético, senão profundo espírito criatdor, sobrepairou as comercialismo, podemos ver do que se salvou das artes menores. Ladrilhos pacientemente vidrados, finos trabalhos de bronze, pedra, ferro, marfim, prata e ouro, bordados, tecidos de ricas tinturas, luxuosos tapetes, mesas, cadeiras e camas de pés ornamentados - isso empresta graça, senão maiores méritos, à civilização da Babilônia. A joalheria abundava profusamente, mas sem a finura da arte egípcia; a preocupação maior era a da exibição. Havia muitos instrumentos musicais - flautas, harpas, gaita de fole, liras, trombones, tropas, trombetas e tamborins. Orquestras e cantores tocavam e cantavam, em coro ou individualmente, nos templos e palácios e nas festas dos ricos moradores.
A pintura babilônica era uma arte subsidiária; decorava as paredes e as estátuas, sem tentar uma independência.
A arquitetura babilônica não pode ser julgada, porque o que resta mal se eleva a alguns pés acima do solo; portanto, não podemos saber que forma tinham seus palácios e templos.
Nicéas Romeo Zanchett
o que posso dizer de vc com esta desenvoltura literaria bem acentuada - parabens
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