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quarta-feira, 11 de julho de 2018

A MORALIDADE SOCIAL - Nicéas Romeo Zanchett


              Uma das funções da família é a transmissão do código moral aos seus membros. Já se disse que a criança, em seus primeiros anos, é mais animal que humana; a humanidade tem que lhe ser embutida dia após dia. 
                Biologicamente a criança nasce mal equipada para a civilização, pois seus instintos  são primitivos e só lhe proporcionam reações para as situações tradicionais ou básicas. No início da vida suas reações são mais propícias para a vida nas florestas do que em agrupamentos urbanos. Cada vício que tem já foi uma virtude indispensável na luta pela sobrevivência; suas virtudes passam a ser vícios depois que as condições que eram indispensáveis desapareceram. Portanto, um vício não é mais que uma nova forma de conduta, mas em geral um retorno a situações naturais que deixaram de existir.
                  O propósito do código moral consiste em ajustar  os naturais impulsos humanos que  geralmente não mudam, ou quando mudam o fazem de maneira muito lenta. 
                  Durante tantas gerações a gula, a cobiça, a desonestidade, a crueldade, e a violência foram impulsos tão úteis aos animais e aos homens, que todas as nossas leis, toda a nossa educação, e todas as nossas morais e religiões não conseguem abafá-los completamente; e alguns deles mostram ainda hoje algum valor de sobrevivência, isto é, revelam-se favoráveis à vitória do indivíduo nessa sociedade de consumo. O animal entope-se de alimentos porque não sabe se vai comer no dia seguinte; esta incerteza dá origem à cobiça. Os yakuts comiam vinte quilos de carne num dia; e semelhantes façanhas também são atribuídas aos esquimós e australianos. A segurança econômica é muito recente para já ter eliminado este impulso natural; podemos ver isso na moderna avidez com que os nossos homens e mulheres acumulam ouro e coisas que, em dado momento, possam transformar em alimentos, como o dinheiro, por exemplo. A avidez por bebida não é tão costumeira como por alimento, porque os grupos humanos sempre se formaram em torno dum bom suprimento de água. Não obstante, a ingestão de álcool é quase universal; não por motivo de alguma antiga bebida, mas porque os homens procuram no álcool o calor, ou o esquecimento das mágoas - ou ainda porque a água que lhes dão não é boa para beber. 
                  A desonestidade não é tão antiga como a voracidade, isto ocorre porque a fome é mais velha que a propriedade. Os "selvagens" mais simples parecem ser os mais honestos. "Sua palavra é sagrada," eles nada sabem da corrupção, da má conduta e da má fé que reina em todo o mundo civilizado. 
            À medida em que as comunicações locais e mundiais melhoraram, a ingênua honestidade dos primitivos povos africanos simplesmente desapareceu; o mundo dito "civilizado" lhes ensinou a arte da má fé. 
                       A desonestidade emergiu, no mundo todo, com a civilização, porque nesta há mais lugar para a "diplomacia", mais coisas para roubar - e a educação torna os homens mais hábeis. Quando a propriedade se desenvolveu entre os primitivos, a mentira e o furto entraram em cena. 
                   Os crimes com violência são tão velhos como a voracidade. A luta por alimento, por terras ou companheiras mais belas e interessantes, sempre foram motivos suficientes para ensopar o planeta de sangue; até hoje a nossa débil educação ou civilização não foi instrumento capaz  de suprimir da sociedade essa estranha forma de viver socialmente. O homem primitivo era cruel porque tinha de ser assim para sobreviver aos constantes perigos. Matar, roubar, destruir já estava incutido em sua natureza individual. A mais negra página da antropologia é a história da tortura primitiva, e do prazer que causava a dor alheia.  Muito desta crueldade estava associada à guerra; dentro da tribo, mesmo os homens mais violentos revelavam-se menos ferozes, e tratavam uns aos outros com certa civilidade e bondade. Mas desde que estivessem na guerra tinham de matar vigorosamente, aprendiam também a matar a paz; porque, para na mentalidade primitiva, nenhuma disputa chega ao fim antes que um dos disputantes caia morto. Entre muitas tribos o homicídio causava menos horror do que causa hoje a nós. Os fueguinos castigavam o homicida com o exílio até que seus companheiros de tribo ou clã esquecessem o crime. Os cafores consideravam o assassino "sujo", e obrigavam-no a andar com a cara preta de carvão para sempre ser reconhecido; mas depois de algum tempo, se ele se lavava, era novamente recebido na sociedade. Os selvagens de Futuna (como também na América) , olhavam para o homicida como para um herói. Em várias tribos nenhuma mulher se casava com homem que já não houvesse matado outro; daí a prática da "caça às cabeças", que ainda sobrevive nas Filipinas. Os que caçavam maior número de cabeças tinham preferência na escolha das melhores moças da tribo; estas se mostravam ansiosas dos seus favores, sentindo que com tal marido podiam tornar-se mães de filhos valentes. No nosso mundo "civilizado" quem tem mais dinheiro, ou patrimônio - mesmo que seja roubado - tem a preferência e admiração.   
                   Onde o alimento é escasso a vida perde seu valor. Os filhos dos esquimós, ainda hoje, matam os pais quando estes ficam velhos e inúteis; quando o filho não faz isso é considerado descumpridor do dever filial. A própria vida do homem primitivo não tinha valor para os demais; matava-se com muita facilidade. Isso, ao que podemos perceber, volta a acontecer nos dias atuais.
                  Os japoneses são considerado homens honrados e,por vergonha muitos se matam. Se um homem ofendido por outro mata-se ou mutila-se, o ofensor tem que fazer o mesmo ou tornar-se um pária; muito velho é o "haraquirí". Qualquer pretexto justifica o suicídio; algumas índias norte-americanas matavam-se quando seus homens as ralhavam;  conta-se que um jovem nativo da ilha de Trobriand suicidou-se porque a mulher gastou todo o seu fumo.
                 Transformar voracidade em poupança, violência em argumento, matança em litigio e suicídio em filosofia, constitui uma das tarefas da civilização. O fato de consentir o forte em roubar ou tirar do fraco de acordo com a lei representa, para alguns, um grande progresso. Nenhuma sociedade pode sobreviver, se permite que os seus membros se conduzam, em relação aos outros, como se comportam com os membros dos grupos inimigos; a cooperação interna é a primeira lei da competição externa. A luta pela existência não termina com o auxílio mutuo; mas incorpora-se, transfere-se ao grupo. A capacidade de competir com grupos rivais será proporcional à capacidade de se combinarem os indivíduos e famílias entre si. Daí o fato de cada sociedade incutir um código moral e de introduzir no coração do indivíduo disposições sociais mitigadoras do furor da luta pela vida; a sociedade encoraja-o, considerando virtudes, as qualidades individuais que redundam em vantagens para o grupo, e deixam de estimular as qualidades contrárias  - que passam a ser vícios. Deste modo, o indivíduo se socializa de fora para dentro, e o animal se faz cidadão. 
               Foi menos difícil gerar sentimentos sociais na alma do "selvagem" do que é elevá-los no coração do homem moderno. A luta pela vida alenta o comunalismo, mas a luta pela propriedade intensifica o individualismo. O homem primitivo foi talvez mais pronto no cooperar com os seus companheiros do que o faz o homem moderno; a solidariedade social ganhou-o mais facilmente desde que ele tinha mais interesse e perigos em comum com o grupo, e menos posses para separá-lo do resto. O homem natural foi voraz e violento; mas também bondoso e generoso, pronto a compartilhar com estranhos o que tinha, e a presentear seus hospedes. Todos sabemos que a hospitalidade primitiva chegava ao ponto de oferecer ao hospede a esposa ou uma filha para passar a noite juntos. A recusa de tal oferta constituía ofensa grave, não só para o hospedeiro como para a mulher dele; foram estes os maiores perigos com que se defrontaram os missionários. Muitas vezes o mau tratamento dado aos hospedes originava-se destas recusas. O homem primitivo tinha senso  de propriedade, mas nenhum ciúme sexual; não se perturbava com o fato de sua mulher ter tido relações sexuais com outros homens antes do casamento, ou de dormir com seus hospedes; mas, como dono dela, não tolerava copulasse com outro homem sem o seu consentimento. 
               As regras da cortesia eram, em muitos povos, bastante complexas, ou tão complexas como nas nações mais adiantadas. Cada grupo tinha modos especiais de saudar e dizer adeus. Dois indivíduos ao se encontrarem esfregavam-se os narizes, ou cheiravam-se, ou mordiam-se amavelmente; mas desconheciam o nosso beijo, beijo civilizado. Algumas tribos mostravam-se mais polidas que a média dos homens modernos; os dyaks, caçadores de cabeças, eram amáveis e pacíficos na vida do lar, e os índios da América Central consideravam o falar alto e os modos brutos do homem branco como sinais de má educação. 
                Quase todos os grupos concordavam em ter os demais grupos como inferiores a si próprios. Os índios americanos olhavam-se como o povo eleito, especialmente criados pelo "Grande espírito" como exemplo para o gênero humano. Uma tribo se chamava si mesma "Os Homens Únicos"; outra "Os Homens  dos Homens"; e os índios caribios diziam: "Só nós somos gente". Os esquimós acreditavam que os europeus iam à Groenlândia para aprender boas maneiras e virtudes.  Consequentemente, raro ocorria ao homem primitivo estender a outros grupos as restrições morais em vigor no seu; francamente admitia que a função da moral era fortalecer o seu grupo contra os outros. Mandamentos e  tabus aplicavam-se só aos da tribo; com os outros, exceto quando hospedes, era permitido agir à vontade de cada um.  Mas quando olhamos para o nosso "mundo civilizado" só vemos opressão ou tentativa de opressão entre os povos de diferentes culturas.
                 O progresso moral na história não está tanto no melhoramento do código moral como no alargamento da área em que ele é aplicado. As morais dos homens modernos não são superiores às dos primitivos, embora os dois grupos de códigos defiram consideravelmente no conteúdo, na prática e no emprego; mas as morais modernas são, em tempos de paz e normalidade, estendidas - embora com menos intensidade - a muito maior número de criaturas do que antes; embora o alcance do código moral tenha diminuído muito depois da Idade Média, em consequência do surto do nacionalismo. 
                À medida em que as tribos se reuniram em unidades mais amplas, denominadas estados, a moralidade extravasou dos limites tribais; e à medida que as comunicações permitiram reunir e assinalar estados, as morais atravessaram as fronteiras e começaram a aplicar seus mandamentos a todos os europeus, americanos e demais povos chamados brancos e,  por fim, a todos os homens do planeta. 
                   Talvez sempre tenha havido idealistas desejosos de estender o amor a todos os homens, e talvez em cada geração se ergam vozes, clamadoras no deserto, contra o nacionalismo e a guerra. O número desses homens provavelmente tenha crescido. Não há moral na diplomacia e se existe ética no comércio internacional é simplesmente porque semelhante atividade não pode viver sem umas tantas restrições, regulamentações - e sem a confiança. 
                   O comércio surge com a pirataria e culmina em moralidade. Poucas sociedade se contentam de repousar a sua moral sobre bases econômicas e utilitárias. Porque o indivíduo não é por natureza dotado de nenhuma disposição para subordinar os interesse s particulares aos do grupo, ou para obedecer a irritantes regulações que não vê apoiadas na força. A fim de dar à moral um invisível "compelidor" e fortalecer os impulsos sociais contra os impulsos individualistas por meio de compreensão abstrata, as sociedades utilizam-se das religiões. O antigo geógrafo "Estrabão" expressou ideias muito adiantadas a este respeito, ha dois mil anos. Disse ele: 
"No lidar com uma multidão de mulheres, ou com uma massa promíscua, o filósofo não consegue influenciá-las pela razão, exortando-as à reverência, à piedade, à fé; não; faz-se necessário o medo religioso, e este medo não pode ser criado sem mitos e maravilhas. Porque trovões, escudos, tridentes, archotes, cobras, lanças, tirsos - (armas dos deuses) - são mitos, e isto em toda a velha mitologia.  Mas os fundadores de estados deram sua sanção a essas coisas, como a papões que amedrontam os espíritos simples. E como esta é a natureza da mitologia, e como ela tem seu lugar no plano da vida social bem como na história dos fatos reais, os antigos agarravam-se aos seus sistemas de educação de crianças e aplicavam-nos aos homens de idade madura; e por meio da poesia supunham poder satisfatoriamente disciplinar todos os períodos da vida. Mas agora, depois de longo tempo, a escrita da história e da filosofia vieram para frente. A filosofia, entretanto, é coisa para poucos, ao passo que a poesia é própria para as massas."
               As morais, portanto, passaram a ser apoiadas pelas sanções religiosas, porque o mistério e o sobrenatural fornecem um suporte que por si mesmas não possuem as coisas empiricamente conhecidas e geneticamente compreendidas; os homens são mais facilmente governados pela imaginação do que pela ciência. Mas seria essa utilidade moral a fonte ou a origem da religião? 
Nicéas Romeo Zanchett 

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