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terça-feira, 24 de setembro de 2013

O COMBATE DO CANHÃO - Por Victor Hugo


O COMBATE DO CANHÃO 
Por Victor Hugo
               Boisberthelot não teve tempo de responder a La Vienville, porque, antes de acabar de falar, foi bruscamente interrompido por um grito de desespero. Ao mesmo tempo ouviu-se um ruido diferente de todos os ruídos costumados; aquele grito e aquele ruido vinham do interior do navio. O capitão e o tenente precipitaram-se para a entre-ponte, mas não puderam lá chegar porque todos os artilheiros subiam, assustados.  Um dos canhões da bateria, uma peça de vinte e quatro, desprendera-se das amarraduras. É este, sem duvida nenhuma, o mais terrível acontecimento que se pode dar no mar; nada mais horrível pode suceder num navio de guerra, quando em marcha no alto mar. 
                O canhão que quebra as suas amarras, transforma-se bruscamente numa espécie de fera sobrenatural; é uma máquina que se torna monstro; é uma massa que se agita sobre as suas rodas, que tem movimento de bola de bilhar, que se inclina ao transportar-se d'um lado para o outro, que se encava quando choca, que vai, vem, se demora, parece que pensa, recomeça a correr, atravessa como uma flecha o navio d'um extremo ao outro, salta, foge, empina-se, bate, destroça, mata, extermina.  É um ariete que bate por sua vontade na muralha, com a diferença que este ariete é de ferro e a muralha de madeira. É a matéria que se liberta; e parece que esse escravo eterno quer vingar-se; parece que a malícia dos que chamamos objetos inertes, se revolta e rebenta de súbito; parece que perde a paciência e tira a sua desforra. É poderosa a cólera do inanimado. Esse pedaço de ferro forjado dá saltos de pantera, tem o peso do elefante, a agilidade do rato, a dureza do machado, o inesperado das ondas, a velocidade do raio e o silêncio do sepulcro. O seu peso é enorme e salta como uma bola ou torce bruscamente, cortando em ângulo reto a linha que acaba de traçar. Que se há de fazer? Como se pode educar esse monstro? A tempestade acaba, o ciclone passa, o vento acalma-se, o mastro quebrado pode substituir-se, tapa-se o rombo por onde entra água, o incêndio apaga-se; mas que fazer  com essa enorme fera de bronze? De que meios lançar mão? Pode-se ensinar um cão de fila  espantar um touro, matar um tigre, fascinar uma bola, enternecer um leão, mas não há meio algum de subjugar esse monstro que se chama canhão desamarrado. Não se pode matar porque está morto; no entanto, vive uma vida sinistra que faz com que destrua tudo. Tem por baixo de si o chão do navio que balança e que faz mover-se, e o mar faz mover o navio e o vento faz mover o mar. Esse instrumento de destruição e de morte não é mais do que um joguete do navio, das ondas e dos ventos;de tudo isso junto, nasce a sua vida pavorosa. Como se pode alguém livrar-se de semelhante máquina? Como manobrar aquele monstruoso maquinismo de naufrágio? Como adivinhar cada um dos seus golpes que podem afundar o navio? Como evitar um projétil que varia de direção, que se move, avança, recua, fere para a direita e para a esquerda, corre, passa, desconcerta a previsão, atropela os obstáculos e mutila os homens? O aterrador de tal situação depende da mobilidade do solo; não é possível combater um plano inclinado que tem caprichos. O navio tem, por assim dizer, dentro de si, prisioneiro, o raio que tenta evadir-se; uma espécie de trovão sobre um tremor de terra. 
                Nim instante pôs-se em movimento a tripulação inteira; a falta fora cometida pelo cabo que se esquecera de encravar a corrente da amarra e atou mal as quatro rodas do canhão. Uma pancada na porta da bateria fizera com que o canhão, mal amarrado, recusasse, quebrasse a cadeia, começando a rodar d'um modo formidável pela entre ponte. No instante em que rebentara a amarra, os artilheiros estavam na bateria, em grupos ou separados, ocupados nos trabalhos do mar que os marinheiros efetuam na previsão do desempacho de combate. O canhão, atirado pelo balanço do navio, foi logo contra um dos grupos e esmagou quatro homens; depois, outro balanço levou-o para o outro lado, onde cortou ao meio outro infeliz e, indo contra uma peça na amurada de bombordo, destroçou-a. Isto produziu a exclamação de angústia que acabamos de ouvir. Toda a tripulação correu para a escada, e, num momento, a bateria ficou deserta. 
                A enorme peça encontrou-se só, entregue a si mesma, podendo fazer  o que quisesse. Era dona do navio. A tripulação, costumada a rir durante as batalhas; tremia cheia de medo. 
                O capitão Boisberthelot, e o tenente La Vienville, que eram dois valentes, pararam no alto da escada, e, mudos, pálidos, hesitantes, olhavam para a entre-ponte. Um homem separou-se com o cotovelo e desceu; era o passageiro, o paisano de que estavam falando momentos antes.  Chegando ao fim da escada, parou. 
                O canhão ia e vinha pela entre ponte, como se fosse o carro vivo do Apocalipse; a lanterna oscilando sob a roda da bateria acrescentava a esta visão uma vertiginosa alternativa de sombra e de luz.  A forma do canhão desaparecia na violência da carreira e ora aparecia negro na claridade, ora com vagos reflexos brancos nas trevas. 
                Continuava causando estragos no navio; já destruíra mais de quatro peças e abrira nos costados do barco duas brechas que por fortuna se encontravam acima da linha de flutuação, mas pelas quais entraria água apenas sobreviesse um temporal. Abordava com frenesi contra os costados do navio; a madeira resistia, mas aquela massa enorme fazia-a ranger, batendo-lhe com uma espécie de ubiquidade insuportável, em toda a parte ao mesmo tempo. Um grão de chumbo agitado numa garrafa não produz uma percussão tão incessante e tão rápida. As quatro rodas passavam e tornavam a passar sobre os cinco homens mortos, esborrachavam-nos, cortavam-nos, despedaçavam-nos, e dos cinco cadáveres tinham feito vinte e cinco pedaços que rolavam pela bateria, e rios de sangue corriam pelo chão. Os costados avariados do navio entreabriam-se já em certos pontos, e em todo o barco reinava um pavor indescritível. 
                 O capitão, tendo recuperado a serenidade, mandou lançar à entre-ponte tudo que pudesse amortecer e evitar a correria desenfreada do canhão; os canhões, as redes, velames, rolos de cabos, os sacos da equipagem e pacotes de papel moeda falsificada de que o navio levava um carregamento, porque essa infâmia inglesa era considerada um ardil de guerra. 
                 Esses trapos de nada serviam porque ninguém se atreveu a descer para os dispor convenientemente; em poucos minuto ficaram reduzidos a estilhas. 
                 O mar estava como devia estar para que este desgraçado acidente fosse o mais completo possível. Se houvesse uma tempestade, talvez o canhão fosse derrubado, votado e, de rodas para o ar, poder-se-hia evitar aquele perigo. Mas não sucedeu assim e o estrago continuava; viam-se rombos e fraturas nos mastros, que, embebidos na madeira da quilha, atravessavam os diferentes andares do navio e desempenhavam o papel de pilares. As pancadas convulsivas do canhão tinham rachado o mastro do traquete; o mastro grande sofrera já bastante; a bateria desconjuntava-se. De trinta peças, dez estavam fora de combate; as brechas aumentavam e o navio começava a meter água. 
                O velho passageiro que descera à entre-ponte parecia um homem de pedra colocado no fim da escada; olhava com tranquilidade aquela cena de devastação; estava imóvel. 
                Cada movimento do canhão fazia agora prever o afundamento do navio; se aqueles estragos continuassem. o naufrágio era inevitável; era preciso, ou conter o desastre, ou morrer; tomar uma determinação, mas qual? Com haviam de apoderar-se daquele combatente? Tratava-se de segurar um doido furioso, de prender um raio, de derrubar um monstro. 
                Todos se calavam presenciando o perigo. Do lado de fora as vagas batiam o navio, respondendo às pancadas do canhão com o quebrar do mar, produzindo o efeito de dois martelos alternados. 
                De repente aquela espécie de circo inabordável, onde saltava o canhão, viu-se aparecer um homem com uma barra de ferro na mão. Era o autor da catástrofe, o culpado do abandono e causa do acidente, o cabo encarregado de vigiar os canhões. Tinha causado o mal e queria remediá-lo; leva uma barra de ferro numa das mãos e, na outa, uma corda com nó corrediço. Assim armado entrou na entre-ponte. 
                Começou então um espetáculo titânico e feroz; o combate do canhão contra o artilheiro; a luta entre a matéria e a inteligência; o duelo do objeto inanimado contra o homem. 
                O homem colocou-se num ângulo, com a barra e a corda nas mãos, imóvel sobre as pernas que pareciam dois pilares de aço e, lívido,tranquilo e trágico, esperava, como se estivesse enraizado no solo. Esperava que o canhão passasse perto dele. O artilheiro conhecia o seu canhão e confiava em que este o conhecesse também, tendo vivido com ele tanto tempo; metera-lhe muitas vezes as mãos na boca; era um monstro familiar; e começou a falar-lhe como um cão. 
               "Vem cá", dizia ele. 
                Desejava que o canhão viesse ter com com ele, mas isso era a perdição; porque, como evitaria que a fera o esmagasse? Todos os homens do navio admiravam, aterrados, aquele espetáculo; ninguém respirava à vontade, a não ser o velho que estava na entre-ponte como sinistra testemunha daquele combate, e ao alcance da peça de artilharia que podia triturá-lo d'um instante para o outro. No entanto não se mexia. Por debaixo daqueles homens as ondas movediças dirigiam o combate. 
               No momento em que, aceitando o espantoso desafio, veio o artilheiro provocar o canhão, um acaso no  balanço do mar fez com que o canhão ficasse um instante parado e como estupefato. "Vem aqui!", dizia-lhe o homem; e ele parecia entender. De repente, caiu sobre o artilheiro que esquivou a pancada. E principiou a luta inaudita do frágil atacando o invulnerável, do combatente de carne atacando a fera de bronze; a força está da parte desta, a inteligência da parte do outro. Sucedia isso na penumbra; era como a visão confusa d'um prodígio. 
                Parecia que o canhão também tinha alma; porém uma alma cheia de rancor e de raiva; parecia estar dotado de vista aquele monstro que acossava o homem; acreditava-se que havia uma certa astúcia naquela massa, porque escolhia os seus momentos de ataque; era qualquer coisa como um gigantesco inseto de ferro que parecia ter uma vontade diabólica. Havia momentos em que aquela lagosto colossal saltava ao teto baixo da bateria e depois caia sobre as suas quatro rodas como um tigre sobre as suas quatro patas, e logo corria direto ao homem; este, flexível  ágil e esperto, torcia-se como uma cobra, esquivando-se aos movimentos daquele raio; evitava os choques, mas as pancadas a que fugia recebia-as o navio, que continuava a demolir-se. 
                Apesar de tudo, o homem continuava a lutar, e algumas vezes chegava a atacar o canhão, arrastando-se ao longo do costado do navio com a barra de ferro e a corda nas mãos, e o canhão retirava-se, como se percebesse que o artilheiro fazia aqueles movimentos para lhe armar um laço. Então este perseguia-o. 
                O canhão parecia dotado de feroz premeditação. Subitamente precipitou-se sobre o artilheiro, mas este deixou-o passar, furtando-se mais uma vez e gritando-lhe a sorrir: "Vá lá a ver outra vez!"  O canhão, furioso, quebrou uma peça de bombordo.  Depois lançou-se a estibordo sobre o homem, que novamente lhe fugiu. Quebrou mais três peças. O canhão, cego e não sabendo já o que fazia, virou as costas ao artilheiro, rodou de traz para diante e foi abrir uma brecha no muro da proa. 
                O homem refugiara-se ao pé da escada, a poucos passos do velho, tendo sempre nas mãos a barra de ferro e a corda. O canhão parecia vê-lo e, sem dar ao trabalho de se virar, recuou sobre o homem com a rapidez de uma machadada. A tripulação pensou que o homem estava perdido, e soltou um grito. O velho, até então imóvel, atirou-se com rapidez selvagem sobre um pacote de papel moeda, e correndo perigo iminente de ser esmagado, conseguiu lançar-se sobre as rodas do canhão; este movimento arriscado e decisivo foi executado com tal certeza e precisão como se aquele homem fosse bem conhecedor de todos os exercícios escritos na obra de Dorosel sobre a  manobra do canhão de marinha. 
                 O pacote fez o efeito d'uma bucha. Um calhau faz parar uma roda, um ramo de árvore separa uma avalanche. 
                 O canhão tropeçou; o artilheiro, aproveitando aquela terrível conjuntura, meteu a barra de ferro entre os raios d'uma das rodas traseiras e o canhão parou. 
                 Estava inclinado, e o homem, com o movimento de alavanca que imprimiu à barra, derrubou-o; a pesada massa caiu com o ruído d'um sino tombado, e o homem, deitando-se sobre ele coberto de suor, passou o nó corrediço pelo pescoço de bronze do monstro, estendido no chão. Assim finalizou o combate, ficando vencedor o homem. A formiga triunfou do mastodonte. 
                 Os soldados e os marinheiros plaudiram; a tripulação precipitou-se sobre o canhão, munida de cabos e correntes, e em um momento o amarraram à amurada. 
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BREVES COMENTÁRIOS
Victor Hugo, admirado como um dos maiores poetas da França, é também celebre como dramaturgo e conhecido no mundo inteiro pelos seus romances.  No entanto, pode-se dizer que os seus romances e contos pertencem também à poesia, por ser neles tão exuberante a imaginação que transporta o pensamento para fora das realidades da vida, elevando-se ao domínio da fantasia. Victor Hugo é portanto um grande poeta, mesmo quando escreve uma prosa, pois os seus romances encerram sempre uma grandeza verdadeiramente poética. O seu célebre romance "Noventa e três" é uma narrativa dramática na qual se descreve o ano terrível de 1793, quando a Revolução Francesa chegou ao auge do seu furor. Nenhum outro autor traduziu tão bem a agitação daquele período; e ao ler o "Noventa e três", chega-se a acreditar que o autor viveu naquele tempo, de maneira tão viva ele o pinta. A seguinte descrição de uma peça de artilharia que se desamarra na bateria d'um navio de guerra, é extraída desse famoso romance. 
Nicéas Romeo Zanchett - Pesquisador 
    

sábado, 24 de agosto de 2013

A VIDA DE CAMÕES - Por Nicéas Romeo Zanchett


A VIDA DE CAMÕES 
Por Nicéas Romeo Zanchett
                 Ninguém sabe ao certo onde ele nasceu, nem a data exata; os historiadores dizem apenas que foi no ano de 1542. Se ele tivesse sido um português comum, ninguém estaria preocupado com isso. Mas ele é, e tudo indica que sempre será, o maior poeta português de todos os tempos. 
                  Lisboa reivindica para si, dizendo-se o berço natal do grande poeta. O mesmo fazem Coimbra, Alenquer e Santarém. Cada uma dessas cidades lusitanas quer para si a glória de ser a terra de nascimento do cantor dos "Lusíadas". 
                  Quando ainda era menino, morava na capital do reino. Seus pais, pertencentes a uma nobre família galiciana, estavam estabelecidos em Lisboa. Ali passou a infância e na juventude foi para Coimbra, onde funcionava, havia muito tempo, a célebre Universidade, um dos grandes núcleos do Velho Mundo.  Naquela irriquieta "cidade dos estudantes", também estudou. Foi ali que fez seu curso de humanidades. 
                  Luiz de Camões era um moço elegante, forte, rijo, com belo rosto e brilhante inteligência. 
                  Ainda em seu inicio estudantil, já compunha primorosas poesias. Sabia se expressar muito bem, falando com desenvoltura e arrojo. Era muito hábil em medir os versos e sonorizar as rimas com vigor e arte. Como sempre acontecia, além de admirado era invejado. Tinha amigos sinceros, amigos fingidos e inimigos declarados, que, não raro, o provocavam. Como o jovem poeta não era de levar desaforos para casa, sempre se metia, mesmo sem querer, em rixas e pugilatos.  
                  Depois de ter completados os estudos em Coimbra, voltou a residir com sua família em Lisboa.
                  Portugal estava sob o reinado de D.João III, filho de D. Manuel, "O Venturoso".  A Corte desse monarca resplandecia de luxo e riqueza. Por ser um nobre homem de letras, teve logo entrada nos esplendorosos serões do palácio real, entre outros nobres e damas da mais alta hierarquia. 
                  No paço de D. João III cultivava-se a arte com decididos ardores. A poesia, principalmente, era acolhida com entusiasmo, que a própria época - a Renascença - acendia na alma da gente culta. 
                  Nesses elegantes saraus palacianos, tocava-se música, havia representações, recitavam-se poemas e sonetos. 
                  A figura esbelta e vigorosa de Luis de Camões tinha realce entre aqueles nobres cortesões. Seu talento era ofuscante. Sua coragem extrema e suas maneiras viris atraiam as atenções, criando amigos,  admiradores e inimigos invejosos.  Recitava suas composições com sabedoria e graça. 
                  Naquele ambiente luxuoso conheceu uma linda moça, Catarina de Ataíde, que apaixonou-se por ele.  Ele também apaixonou-se por Catarina, mas por inveja, foi caluniado e incompreendido,  a ponto da família dela opor-se ao seu casamento. 
                  Enojado com as intrigas da Corte, as hipocrisias e maldades que se tramavam nos salões e corredores do paço, Camões abandonou os saraus de arte, afastou-se das luxuosas reuniões, não frequentando mais o palácio de D.João III. Apesar disso sua amada Catarina continuava fiel e esperançosa. 
                  Foi justamente naquele momento que surgiu a guerra na Africa entre lusos e mouros. Em Lisboa abre-se o voluntariado.  Camões, desiludido com a vida que levava, alista-se marcha para o continente Africano. Seu pai o acompanhou nessa aventura incerta. 
                  Na África, Luiz e seu pai lutam lado a lado. Ali travava-se uma batalha horrível. Nos turbilhões do embate, entre espadas, lanças, azagaias e cimitarras, que soltam faíscas, cortam, furam e decepam. Setas mouriscas, muitas envenenadas, riscavam os céus  e uma delas dirigia-se ao peito do seu progenitor. Camões, em sadio impulso de amor filial, antepõe o escudo. A seta ricocheteia e lhe vasa um olho. Assim foi que perdeu uma vista, mas seu pai saiu sem nenhum ferimento. 
                     Em 1549, Camões vota a Lisboa.  Continua a escrever poesias, mas já não tem os mesmo júbilos de antes, pois a visão defeituosa e a desesperança de casar-se com Catarina, o tornam recolhido e melancólico. 
                     Sentindo necessidade de alguma distração, é visto frequentemente passeando sozinho pelas ruas de Lisboa. 
                     Nesse tempo, como ainda hoje, havia em Lisboa do dia do Corpo de Deus (Corpus Christi), que se comemoravam em grandiosa procissão. 
                     Numa dessas manifestações de fé, quando ia em meio à procissão, trava-se uma forte rixa entre lacaios de um fidalgo e os do coche do rei. Luiz de Camões presencia a rixa a certa distância. Mas, vendo que a razão estava do lado dos lacaios do fidalgo, desembainha sua espada (que como nobre tinha o direito de usar) e fere com ela um lacaio real. Embora fosse um "gentil-homem" e tivesse agido com justiça, apesar de violenta, foi detido, e dias depois condenado. 
                    Na escuridão de uma infecta masmorra, põe-se a ler a Primeira Década do historiador João de Barros, seu contemporâneo, obra em que são narrados  os feito militares  dos portugueses nas terras do Oriente. Foi ai que despertou em seu espírito a ideia de escrever, a respeito, um poema épico sobre esses sucessos e que daria o nome de "Lusíadas". 
                    Assim começa, na prisão, a escrever os seus extraordinários versos. Não pode, porém prosseguir na obra sem conhecer os lugares que serviram de teatro aos heroicos feitos lusitanos. As imagens escritas por João de Barros fervilhavam em sua imaginação. 
                    Tão logo saiu da prisão, em 1553, embarcou cheio de esperanças e  idéias para a Índia, aportando em Goa. Nessa possessão portuguesa, Camões, que tomara parte nas lutas contra os inimigos de Portugal, é mal visto pelos nativos que costumavam hostilizar os colonizadores lusitanos. 
                     Mesmo com alguma dificuldade, retoma sua produção poética e escreve a peça "Filodemo",  para ser levada à cena nas festas da posse de D. Francisco Barreto no cargo de Governador da Índia Portuguesa. 
                     Em 1558, Camões é nomeado para um cargo oficial - o de provedor mor de defuntos e ausentes - para a remota colônia de Macau, colônia portuguesa encravada na China. 
                     Foi em Macau que teve tempo para escrever mais assiduamente. Todas as tardes, após o trabalho, recolhia-se a uma gruta (a Gruta de Camões - como passou a chamar-se depois) e ali passava para o papel os vigorosos e empolgantes versos do seu extenso poema, a sua obra prima e máxima da língua portuguesa. 
                     Mas, o brilho de sua inteligência não tardou a despertar inveja e maldade; a calunia o perseguia.  Foi injustamente denunciado de apropriar-se do dinheiro do povo. 
                     Diante dessa injustiça, e para defender-se da acusação, embarca sem perda de tempo para Goa. Mas, ao chegar à Indo-China, junto ao rio Cambodja, sua embarcação sofria com o mar agitado e ondulado acabando por naufragar. 
                     Sem perder tempo, Luiz pegou os originais de seu poema  atirando-se ao mar revolto; com a mão esquerda  segurava sua obra acima das águas agitadas e com a direita dava braçadas, e assim foi nadando até a praia. 
                     Com sua obstinação e coragem salvou sua obra prima, "Lusíadas",   que o tornou conhecido como o maior poeta português. 
Nicéas Romeo Zanchett 
               



domingo, 11 de agosto de 2013

GAUTAMA BUDA


GAUTAMA BUDA 
Por Nicéas Romeo Zanchett 
                  Cerca do ano 1.000 a.C., no seio da civilização dos Árias, conquistadores do Pendjab e do alto do Ganges, surgia o Bramanismo, uma religião complicada, profundamente modificadora da posição social de seus fiéis, a qual situava em Brama a personificação do Absoluto, dizendo-o criador do mundo, dos deuses e dos seres em geral.  Junto a Brama, governavam o mundo, com iguais poderes o deus Vishnu, personificação do bem, além de Shiva, personificação do mal, portanto, da destruição. 
                   Sacerdotes do Bramanismo eram os Brâmanes que, na civilização dos Árias, tiveram enorme importância na vida social; porquanto eles constituíam uma casta privilegiada que, graças à sua a sapiência das coisas da religião, encontrava-se com maior autoridade sobre as outras três castas, em que estavam divididos os homens. Além destas quatro subdivisões, havia, ainda, os "párias", isto é, os impuros, considerados menos do que nada, na escala social. Foi neste contesto daquela civilização que nasceu Gautama Buda.  
                  Gado, agricultura e comércio tornavam rica a pequena e aristocrática república que se estendia aos pés do Himalaia, no Nepal, onde a estirpe dos Sakiya era responsável pela sorte de um milhão de súditos. Da capital, Kapilavatthu (índia), o regente Suddhodana, rico e nobre latifundiário, governava um exíguo número de pequenos senhores da aristocracia, orgulhosos de sua pele branca e das terras herdadas dos Arianos, uma vasta população de progressistas artesãos, um povo de servos da gleba, que o cativeiro obrigava à horrível humilhação de trabalhar por algum pagamento. Na sua corte, porém, não havia tristeza e o tempo  transcorria sereno, entre toda sorte de requintados prazeres. 
                   Em 567 a.C. Suddhodana teve, de sua esposa Maya, quando esta já passara dos 45 anos de idade e não mais esperava ser mãe, um filho ao qual pôs o nome de Siddhautta, mas que sempre foi chamado de Gautama, pois os Sakiya se orgulhavam de descender dos Gautâmidas. As lendárias biografias atribuem a maternidade de Maya a um milagre, e narram que a rainha vira , em sonho, sua criaturinha sob a forma de um pequeno elefante branco. E talvez seja esta a razão porque este animal, que é símbolo da mansidão no Oriente, e é sagrado aos budistas.
                   Gautama, como se o destino houvesse desejado que ele abrisse os olhos sobre aquela natureza que, na maturidade, iria amar muitíssimo, nasceu em um parque, quando Maya se encontrava de viagem para Koli. Uma semana depois, a mãe morreu e o menino foi entregue à sua madrinha Pajapati, que o criou e o amava tanto quanto aos seus dois filhos, um casalzinho. 
                   Por seu nascimento, Buda pertencia à casta dos kshatryas (guerreiros). Chamou-se Sákia para lembrar sua família e Gautama para recordar sua raça, cujo venerado pai era - diziam - o próprio Gautama. Só mais tarde recebeu o nome de Buda, assim como, provavelmente o de Sidarta, (aquele cujos desejos se realizam), embora se assegure que recebeu este nome quando menino. Perdeu sua mãe sete dias depois de nascer e foi confiado aos cuidados de sua tia materna, que também fora uma das mulheres de seu pai, antes da morte de Maya (Maiadevi). à medida que crescia, distinguia-se por sua formosura e sua inteligência extraordinária, e não tardou em ultrapassar a ciência dos mestres encarregados de instruí-lo. Recusava-se a tomar parte nos brinquedos próprios de sua idade com seus companheiros, e jamais estava tão contente como quando se retirava à solidão e se absorvia na meditação no fundo do bosque próximo à sua casa. Foi lá que seu pai o encontrou, um certo dia em que o supusera perdido; para impedir que se consumisse, assim, em sonhos, o rei resolveu casá-lo imediatamente. Quando os ministros lhe informaram sobre o desejo de seu pai, pediu sete dias para refletir; depois, tendo  adquirido a convicção de que nem mesmo o matrimônio poderia perturbar a calma de seu espírito, permitiu aos anciãos que lhe procurassem uma esposa. 
                   Quando o jovem príncipe, cujos lindos trajes lhe aumentavam o esplendor pondo em realce a sua beleza, completou 19 anos, casou-se com sua prima Yasodhá e com ela partilhou a sua vida real durante dez anos. 
                    De início, o pai da formosa jovem, Daudapani, não aceitou o casamento, porque haviam lhe falado do príncipe como um jovem entregue à moleza e à indolência; porém, apressou-se a dar seu consentimento, quando viu que Sidarta ultrapassava a todos os seus rivais nos exercícios do corpo e do espírito. Sua união foi das mais felizes; porém, depois, tal como antes de sua boda, o príncipe permaneceu mergulhado na meditação dos problemas da vida e da morte. "Nada há estável na terra", dizia; "a vida é uma fagulha produzida pela fricção da madeira, acende-se e apaga-se; não sabemos de onde veio nem para onde vai. A vida é como o som de uma lira, e o sábio se pergunta em vão de onde veio e para onde vai. Deve haver alguma ciência, na qual possamos encontrar o descanso. Se eu a alcançasse, poderia trazer a luz aos homens. Se fosse livre, eu mesmo poderia libertar o mundo". O rei observava atentamente à melancolia do seu filho, e tentava, mas em vão, todos os meios para afastá-lo de seus pensamentos tristes. 
                   Circundado pela afetuosa solicitude paterna, Gautama, aos 29 anos, ainda não havia conhecido nenhuma espécie de sofrimento. Mas, um dia, ao passar pelo parque com seu cocheiro Channa (assim narra a lenda), ele avistou subitamente um um velho enfermo, um pútrido cadáver, e um venerável monge mendigo; ficou muito impressionado, porque jamais imaginara que aos homens fossem reservados tamanhos sofrimentos. - Quem é esse homem? - perguntou de propósito o príncipe a seu cocheiro. É baixo e não tem forças; suas carnes e seu sangue secaram; seus músculos pegaram-se à pele, seus cabelos são brancos, seus dentes balançam, seu corpo está enfraquecido; apoiado em um bastão anda com dificuldade, tropeçando a cada passo. Isto é tipico de sua família, ou é a lei de todas as criaturas do mundo?"  "- Senhor - respondeu o cocheiro- esse homem está molestado pela velhice; todos os seus sentidos estão debilitados; o sofrimento destruiu sua força e seus parentes o abandonaram; encontra-se sem apoio; inabilitado para o trabalho, abandonam-no como á madeira apodrecia no bosque. E não é uma condição particular de sua família. Em toda a criatura a juventude é vencida pela velhice; vosso pai, vossa mãe, todos os vossos parentes e amigos terminarão pela velhice também; não há outra saída para as criaturas". "- Assim, pois - disse o príncipe - a criatura  ignorante e débil, com mau juízo, orgulha-se com a juventude que o embriaga e não vê a velhice que o espera. Quanto a mim, vou-me embora daqui. Cocheiro, faça logo voltar o meu carro. Eu, que também sou a futura residência da velhice, que tenho que ver com o prazer e a alegria?" E o jovem príncipe, voltando o seu carro, regressou à cidade, sem ir a Lumbini. 
                   Em outra ocasião, dirigia-se com numeroso acompanhamento, pela porta sul, ao jardim de recreio, quando percebeu no caminho um homem enfermo, abrasado pela febre, com o corpo marcado, sem companhia, sem abrigo, respirando com grande dificuldade, sufocado e obsessionado, ao que parece, pelo aumento da enfermidade e a proximidade da morte. Depois de haver se dirigido ao cocheiro e obtido a resposta que esperava, disse: " - A saúde é pois, como o capricho de um sonho, e o temor do mal  tem, pois, essa forma insuportável. Que homem prudente, depois de ter visto o que realmente é, poderá dai em diante ter a ideia da alegria e do prazer?" Em seguida, o príncipe fez que voltasse o seu carro e regressou à cidade, sem querer ir mais adiante. Mostrava-se profundamente decepcionado com avida que levava. 
                   Outra vez, quando também se dirigia pela porta oeste do palácio, ao jardim do recreio, quando no caminho viu um homem morto, posto no ataúde e coberto com um lençol. A multidão de seus parentes o rodeava, chorando, lamentando-se com gemidos prolongados, arrancando-se os cabelos, enchendo de pó a cabeça, batendo no peito e dando grandes gritos. O príncipe, voltando a tomar o cocheiro por testemunha daquele doloroso espetáculo, exclamou:  " - Ah! desgraçada a juventude que a velhice há de destruir! Ah! Desgraçada a vida na qual o homem permanece tão poucos dias! Ah! Desgraçada saúde que pode ser destruída por tantas enfermidades! Se não houvesse nem velhice, nem enfermidade, nem morte! Se a velhice, a enfermidade, a morte, fossem condenadas para sempre!" 
                   Depois, revelando pela primeira vez seu pensamento, o jovem príncipe acrescentou: "Voltemos atrás; tratarei de realizar a liberdade". 
                   Na corte, festejava-se, naquele dia, o nascimento de Ráhula, o primogênito de Gautama e de Yosodhá, e todos os cortesões tinham se apresentado com seus mais ricos e vistosos trajes, preparado suas mais eloquentes frases e o mais luminoso sorriso para festejar o grande acontecimento. Gautama, estarrecido ante aquilo que vira antes, não mais conseguia experimentar prazer algum, e uma intensa  mágoa o envergonhou por causa da vida que levava até então. 
                    Um último encontro acabou por decidi-lo a dissipar todas as vacilações  Saía pela porta do norte para dirigir-se ao jardim do recreio, quando viu um "bikson" (mendigo) , que parecia, em todo o seu exterior, tranquilo, disciplinado, contente, entregue às práticas de um "bramatchari" (encenação), com os olhos baixos, não fixando os seus olhares além da distância de uma jugada, com traje completo, trazendo com dignidade sua vestimenta de religioso e a bandeja de esmolas.  " - Quem é esse homem?" - perguntou o príncipe.  "- Senhor - respondeu o cocheiro - esse homem é um desses que são chamados "bikshous". Renunciou todas as alegrias do desejo e leva uma vida muito austera. esforça-se por dominar a si mesmo e faz-se religioso. Sem paixão, sem inveja, vi pedindo esmolas." "- isso é bom e está dito bem - respondeu Sidarta. Professar  numa religião sempre foi louvado pelos sábios. Será meu recurso e o recurso de outras criaturas. Será para nós fonte de vida, de felicidade e de imortalidade". 
                  Em seguida, o príncipe, tendo feito que seu carro voltasse, entrou na cidade sem ver Lantonin. Sua resolução estava tomada. 
                   Depois de haver declarado ao rei e à sua mulher a sua intenção de retirar-se do mundo, Buda preparou-se para abandonar o palácio. Na mesma noite, enquanto todos estavam dormindo, ele partiu; talvez, como diz a lenda, o fiel Channa acompanhou-o até as fronteiras do reino, talvez tenha seguido sozinho, dirigindo-se por entre as trevas até a atual Rajgir - (Rajagarra- Índia). Ali, na solidão, nas grutas circundantes à cidade, viviam numerosos acetas (homens que renunciam aos prazeres terrenos da vida) que, confiando na caridade do próximo, nutriam-se de esmolas e transcorriam as horas do dia  e da noite em perene penitência e forte meditação.  Abandonando os ornamentos reais, Gautama vestiu a roupa humilde do asceta, e a rica bagagem, que costumava levar consigo em suas viagens, substituiu por outra, bem mais simples, a de mendigo: uma caneca para esmolas, uma navalha, uma agulha e coador para filtrar água.  Assim vestido, ficou semelhante aos demais anocoretas (monges ou eremitas) ;com estes, ele também tinha em comum o desejo de uma vida mais espiritual, mas ainda não se sentia preparado para a vida religiosa.  E foi por este motivo que, nos primeiros tempos, Gautama quis ser discípulo de dois mestres da vida religiosa, dois "brâmanes", para que lhe ensinassem como chegar, através do martírio do corpo,  à "suprema clarividência"; este feliz momento, que nem todos os ascetas conseguiam alcançar, era um estado de alma estático, muito próximo da catalepsia e da inconsciência. 
                   À época em que Gautama Buda se entregou à vida religiosa, o Bramanismo estava passando por profunda crise, porque os homens mais evoluídos tinham começado a duvidar do poder dos sacerdotes, pois estes, na verdade, exercitavam artes mágicas que os faziam parecer mais feiticeiros de tribos primitivas do que expoentes de uma civilização superior; pretendiam saber dobrar à sua vontade os deuses, mas, ao mesmo tempo, nem sempre sabiam responder satisfatoriamente aos grandes interrogatórios sobre o BEM e o MAL, sobre a existência da alma e sobre a eternidade, dúvidas que sempre atormentaram e ainda atormentam  o espírito  do homem religioso.  Aconteceu, pois, que muitos jovens, frequentemente oriundos das melhores famílias, abandonaram a religião oficial, personificada pelos brâmanes, e procuraram, seguindo este ou aquele homem que julgavam mais sábio, alcançar  por si sós a explicação dos grandes problemas da vida. Aprofundando um princípio que já estava inscrito no Bramanismo, segundo o qual era necessário meditar longamente  e sacrificar o próprio corpo, para chegar à Verdade, eles se isolaram da sociedade, tornaram-se ascetas ou anacoretas, e passaram a mortificar de tal forma o próprio corpo, com jejuns e suplícios, que praticavam verdadeiros atos de heroísmo; somente assim, de fato, pensavam eles, sua alma seria totalmente purificada. 
                   Analisando a história, sem a influência das paixões, pode-se dizer que Gautama Buda foi um desses jovens que aderiu a uma nova forma de procurar a verdade absoluta na bondade infinita de Deus Universal. 
                   Buda, depois de muitos estudos, compreendera que nem as doutrinas nem as autoridades do brâmanes contribuíram em nada  para realizar a emancipação do homem nem para libertá-lo do temor da velhice, da doença e da morte. Depois de longas meditações e muitos êxtases, acreditou, por fim, ter chegado a essa compreensão suprema que descobre a causa de todas as mudanças inerentes à vida e destrói, ao mesmo tempo o temor a essas mudanças. A partir desse momento  tomou o nome de "Buda", que quer dizer "o iluminado". Hoje, passados mais de 26 séculos, podemos dizer, na verdade, que esse dia decidiu o destino de milhares de homens. Durante algum tempo, Buda perguntou-se, duvidando, se deveria guardar sua ciência ou comunicá-la ao mundo. Sua compaixão pelo sofrimento do homem foi mais forte, e o príncipe converteu-se no fundador de uma religião que, depois de tantos séculos, continua sendo seguida por milhões de seres humanos. 
                    O elemento mais importante da reforma budista sempre foi seu código social e moral, não suas teorias metafísicas. Esse código moral, considerado em si mesmo, é um dos mais perfeitos que se tem conhecido no mundo. O código budista não contém apenas os cinco grandes mandamentos de não matar, não roubar, não cometer adultério, não mentir, não embriagar-se. Encerra preceitos especiais contra todos ps matizes do vício, contra a hipocrisia, a cólera, o orgulho, as suspeitas, a avidez, as conversações ociosas, a crueldade com os animais. Entre as virtudes, cuja prática recomenda, o budismo, não somente encontramos o respeito aos pais, o cuidado dos filhos, a submissão à autoridade, o agradecimento aos benfeitores, a moderação na boa sorte, a resignação nos momentos de prova, a igualdade de espírito em todos os momentos; vemos também preceitos que não se encontram em nenhum outro código de moral como, por exemplo, perdoar as injúrias e não devolver o mal com o mal. 
                     Buda não rejeitava a crença na vida futura, que tem proporcionado armas tão poderosas para agir sobre os sentimentos religiosos e o comportamento dos homens. Tenho, para tanto, a convicção de que ele sabia que se esta vida, tarde ou cedo, há de acabar no nada, não valeria a pena  ter tanto trabalho e nem teria imposto tantos sacrifícios a seus discípulos. 
                     Somos todos parte de um universo em constante mutação. O mal que fazemos a qualquer ser, animal, vegetal ou mineral, repercutirá na nossa forma de vida.
Nicéas Romeo Zanchett 
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sexta-feira, 2 de agosto de 2013

A REFORMA PROTESTANTE Por Nicéas Romeo Zanchett


A REFORMA PROTESTANTE 
Por
Nicéas Romeo Zanchett 
                    Com o Renascimento houve o reflorescimento da inteligência humana, porém não pode escapar ao perigo que traz consigo uma espécie de eclosão, que é o progressivo  alheamento das aspirações profundas, primitivas e puras do coração. Dedicando-se aos cintilantes efeitos do engenho, desejavam que os verdadeiros anseios se fundissem num funesto materialismo. 
                   Enquanto Carlos V e Francisco I batalhavam pela glória da própria coroa e pela posse de algum pedaço de território, conservando o mundo em armas e saqueando as pacíficas cidades da Itália e de Flandres, outra tempestade, e muito mais grave, se adensava sobre a Europa; uma guerra curialesca e togada, combatida por homens mais afeitos à pena do que à espada, mas anunciadora de grandes e sangrentos eventos. 
                   Entre o mundo germânico e o latino, jamais houvera muita amizade, mesmo no campo religioso; muitos bispos alemães mal toleravam a autoridade de Roma, seja por cego nacionalismo seja por contrastados interesses políticos. O fausto da corte pontifícia irritava a muitos, que viam
nisso uma evidente discordância dos preceitos evangélicos; a rigidez dogmática do Catolicismo, o absoluto princípio  de obediência e de hierarquia, que constitui a inabalável estrutura da Igreja, pareciam algo incômodo a quem da própria Igreja não lhe sentia íntima  grandeza. Todos esses fatores e outros de caráter mais pessoal, agiram quase que inconscientemente sobre  aquele obscuro monge agostiniano, Matinho Lutero, um jovem de trinta e cinco anos, de quem improvisadamente se começou afalar, em fins de 1517. 
                   Quem realmente quiser compreender a reforma protestante ou reforma luterana e calvinista, é indispensável, antes, entender a crise cristã e o seu desenvolvimento durante o papado de  Leão X.  
                   Martinho Lutero, desde muito tempo, antes das suas proposições heterodoxas, havia suscitado algumas apreensões entre seus superiores. Em sua viagem a Roma em 1510, tinha experimentado a indiferença, a frivolidade dos sacerdotes, e os vícios da corte pontifícia. Contudo, é falsa a teoria de que diz ser este religioso, cheio de zelo, um reformador da Igreja. Se mais tarde vem a querer endireitar, corrigir, suprimir os abusos, é porque na origem desses abusos pensa encontrar um erro, um "pecado espiritual", a doutrina maldita da salvação pelas obras. Por essa doutrina, diz ele, a Igreja impõe fardos arrasadores sobre os ombros de seus fiéis, e como estes não podem suportá-los, lhe propõe a substituição desses fardos por obras impossíveis; mentiras para convencer os fiéis a suportarem tudo silenciosamente. 
                   É esta mentira que Lutero denunciará no primeiro grande fato da reforma luterana; o negócio das indulgências. Este comércio começara em 1515. Para pagar a construção da Igreja de São Pedro em Roma, o papa Leão X organizara, especialmente na Alemanha, pátria de Lutero, a venda de indulgências plenárias que asseguravam aos compradores o perdão de seus pecados e das penas temporais devidas por esses pecados; a absolvição, uma vez na vida, e em caso de morte, de qualquer espécie de pecado; a redução de pena para as almas  do purgatório. Sobre esta frutífera venda, alguns príncipes alemães cobravam uma comissão. Lutero, como sacerdote, pudera constatar  no confessionário, o perigo espiritual que trazia este mercado; discutia e duvidava da legitimidade da doutrina de salvação em que tal comércio implicava. 
                    Lutero, irritado pelos abusos cometidos por alguns pregadores dominicanos, atacou publicamente a doutrina das indulgências papais, estendendo aos poucos suas críticas a outros dogmas e enunciando princípios que sacudiam  as próprias bases do edifício católico. Em 31 de outubro de 1517, sobre a porta da capela do castelo de Wittenberg, apareceu afixado um amplo manifesto; eram as "95 teses", que resumiam a doutrina do monge rebelde, suficientes para fazer acusar seu autor de heresia. 
                    A reação das autoridades eclesiásticas e do próprio Pontífice, logo informado do acontecimento, foi nítida e decidida; Lutero foi convidado a retratar em bloco suas posições. Mas, por detrás de Lutero, alinhavam-se os senhores que tencionavam  apoderar-se dos bens eclesiásticos, o povo que se  exaltava com aquela vaga aura de socialismo que pairava  nas doutrinas luteranas, muitos estudiosos e teólogos alemães,  a quem pesava a dependência espiritual de Roma. 
                     Martinho Lutero tinha, física e moralmente, o estofo inconfundível de chefe e de combatente; maciço de corpo, sanguíneo, egocêntrico até à presunção, tão poderoso no ataque quanto agudo e genial na discussão, o monge encontrou-se perfeitamente à vontade no papel de reformador. Quando Leão X o ameaçou de excomunhão, caso não se retratasse de suas afirmações, ele queimou, na presença do povo, a bula pontifícia. Esse ato teve um incalculável alcance; o cisma estava declarado e o ex-monge herege tornou-se o fundador de uma seita que  já contava com numerosos adeptos, em toda a Alemanha.  Acenar aqui e acolá, ainda que superficialmente, à substância teológica da doutrina luterana não é, naturalmente, possível; basta dizer que ela negava a autoridade da Igreja sobre textos sagrados, confiando a interpretação ao leitor ( na realidade, Lutero impunha sua interpretação); reduzia os sacramentos, a liturgia, a veneração pelos santos, a simples superstições, afirmava que unicamente a fé em Cristo bastava para garantir o "Paraíso", mesmo ao mais impenitente e calejado pecador.  "Seja pecador e peque fortemente, mas creia fortemente", escrevia Lutero ao seu discípulo Melantone.  A perturbação das consciências, ente essas teorias, era enorme; Já o próprio imperador Carlos V, embora ameaçando, não pode assumir uma atitude decidida, visto que grande parte de  seus súditos estava contra a Igreja. Muitos príncipes, que até tinham abraçado as novas doutrinas, "protestaram" publicamente, em 1524, contra o edito, daí veio o nome de "Protestantes" dado aos Luteranos. 
                    Martinho Lutero estava, no entanto, muito ocupado em esclarecer seus  pensamentos (o que, na realidade, jamais conseguiu); escrevia volumes e opúsculos eficazmente polêmicos, embora pouco persuasivos, e dedicava-se àquela esplêndida tradução da Bíblia, que foi a base de toda a literatura alemã, atém então praticamente inexistente. Além de ter sido o criador da língua literária, Lutero foi autor de muitos belos cânticos religiosos.
                    Uma grande voz cristã acabava de se levantar. Falava de Deus, de seu amor, da salvação, da Igreja, de uma maneira diferente, que não lançava as almas numa angústia invencível e eterna. Aquela voz, como não poderia ser diferente, provocou ecos em toda a vida religiosa cristã. 
                    Nos últimos anos, viveu pacificamente, sempre escrevendo e pregando, rodeado de filhos (casara-se em 13 de janeiro de 1525 e de discípulos, protegido pelas armas e pelo prestígio do "eleitor" da Saxônia.  Morreu em 1546, em Eisleben; um ano antes, Paulo II instalara o Concílio de Trento, que, além de reconduzir a Igreja a uma vida  mais consentânea com os princípios do Cristianismo, iria opor uma válida defesa para aquela que ficou conhecida como a heresia luterana. Infelizmente, porém, a unidade dos católicos fora irremediavelmente partida. 
                    A originalidade de Lutero é seu protestantismo, isto é, a decisão de colocar o problema humano do destino em função apenas de Deus; isto é, não apenas a decisão de colocá-lo nestes termos, com inflexível rigor contra o humanismo puro do Renascimento e o humanismo desvitalizado do catolicismo; é a convicção crua, firme, mantida ante todos e ante si mesmo, de que esse problema único está resolvido plenamente no Evangélio de Jesus Cristo, alcançado apenas pela fé do crente. 
                    É a fé de Lutero que temos de conhecer  se quisermos conhecê-lo. 
                      A Igreja que leva seu nome conta, no mundo inteiro, com milhões de fiéis, e todos os cristãos que pertencem a qualquer uma das correntes religiosas oriundas  da Reforma sabem quanto devem a este genial iniciador. Nisto concordam tanto aqueles que tentam denegri-lo como aqueles que o exaltam. 
                     Hoje, já não se pode duvidar de que os objetivos de Lutero era o bem de todos baseado nos reais princípios de Cristianismo. Infelizmente, a Igreja Protestante, no decorrer de seu desenvolvimento, foi absorvendo pessoas inescrupulosas, verdadeiros estelionatários, cujos objetivos são unicamente explorar os menos favorecidos intelectual e financeiramente. Milhares de Igrejas, que se denominam "Protestantes", estão espalhadas pelo mundo praticando todo o tipo de anti-cristianismo. Mas precisamos ser sábios para separar o "joio do trigo".  Muitas são aquelas que realmente procuram conduzir seus fiéis, sem explorá-los, nos princípios que Cristo pregava sem lhes cobrar dízimos. Cabe aqui lembrar que foi basicamente contra a exploração financeira que Lutero se rebelou. 
Nicéas Romeo Zanchett 
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domingo, 28 de julho de 2013

PREGAÇÕES DE SÃO FRANCISCO DE ASSIS -


PREGAÇÕES DE SÃO FRANCISCO DE ASIS 
Por Nicéas Romeo Zanchett 
BREVE BIOGRAFIA 
                     S. Francisco de Assis, fundador da ordem franciscana, nasceu em Assis , o Éden da península itálica, em 1182; era filho de um comerciante que sonhava com uma alta posição na côrte para seu filho. Jovem, alegre, fino e espirituoso; e embora estudasse pouco, trabalhava com luxo na tenda de seu pai e a todos agradava. Cresceu entre telas provençais  e tecidos toscanos da tenda  paterna, na abundância que sempre proporciona uma grande fortuna. Desde cedo revelou-se hábil para os negócios, "mais ladino inda que o seu pai"; mas via com desprezo a avareza e logo começou a chamar a atenção por sua prodigalidade. Em suas veias corria o sangue
provençal de sua mãe. Ávido de gozos e prazeres, era o jovem mais boêmio da cidade. Tinha estatura média, era moreno e não muito bonito; entretanto, dotado de uma simpatia irresistível, o que lhe valeu o cetro da elegância entre aquela juventude inquieta que consumia o tempo entre torneios de cavalaria e os sutis prazeres da alegre ciência dos trovadores. 
                      Mas já naquela época, juntamente com as festas, tinha outros dois amores: o dos pobres e o da natureza. Não era desses egoístas que não tem um centavo para dar  a um mendigo, mas tem muito para gastar tudo numa boemia. Exatamente por isso, sentiu-se profundamente ferido quando, em determinada ocasião, estando a tenda de seu pai  repleta de clientes, e ele muito ocupado em atendê-los, viu ir embora um pobre mendigo sem ter recebido a esmola pedida. A partir daquele momento decidiu socorrer  quem quer que viesse pedir algo "pelo amor de Deus."
                      Aos vinte anos  foi feito prisioneiro por defender sua pátria contra Perusa. No cárcere surpreendia seus companheiros com seus cantos transbordantes de alegria. - "Não sabeis - exclamava - que me espera um grande futuro ?" Era então um discípulo do entusiasmo cavalheiresco, preenchido de visões douradas de guerras, vitórias e principados. Às vezes seus companheiros o despertavam de seus devaneios com expressões como esta: 
                     - Eh! Francisco! Sonhas com algum casamento? 
                     - Efetivamente - respondia ele; - mas a senhora dos meus pensamentos é mais nobre, mais rica, mais bela que todas as donzelas que conheceis. 
                     Estas palavras tinham já um sentido que aqueles jovens não podiam entender. 
                     Aos vinde e dois anos, teve uma doença que o levou às portas da morte e mudou completamente os seus ideais; começou a aspirar uma vida de sacrifício, a tratar dos pobres e dos doentes, e mesmo dos leprosos. De vez em quando desaparecia de casa, mas não para folgar com seus amigos, e sim para esconder-se em lugares ermos; andava inquieto por conhecer a vontade de Deus; de pródigo se transformara em menosprezador do dinheiro. Quando não lhe restava mais nenhuma moeda no bolso, dava aos pobres alguma peça de sua roupa, o chapéu, o cinto e até a camisa. Quis saber também o que era pedir esmola; foi em peregrinação a Roma, depôs tudo o que tinha no altar de São Pedro, e reuniu-se a um grupo de mendigos, dando em esmolas tudo quanto recebia. Dizem que falava francês quando se sentia feliz, e nestas horas, viam-no pedir esmola em francês. 
                     Certa vez ia a cavalo, absorto em suas meditações, quando de repente, a poucos passos, havia um leproso. Naqueles tempos esta doença era a coisa que mais horrorizava o mundo. Teve o ímpeto de voltar, mas logo dominou-se. Resolutamente, desceu do cavalo, aproximou-se do leproso cujo nariz e lábios, já putrefatos, exalavam terrível mau cheiro, depositou sua esmola na mão carcomida pela doença e, reprimindo a náusea, beijou os dedos repletos de úlceras. 
                     Os habitantes de Assis viam-no frequentemente orando em São Damião, uma pobre igreja dos arredores da cidade, cercada de plantações de feijão e de oliveiras. Gostava de ali ficar em solidão diante do Cristo bizantino  que lá havia.  Conta-se que um dia Cristo abriu  os lábios e o jovem ouviu estas palavras; "Francisco, repara minha casa". Decidindo a obedecer àquele, que imaginou ser um "mando divino", Francisco tomou sua mula, foi até a tenda de seu pai, e lá carregou-a com quadros e tecidos, dirigindo-se, em seguida a Foligno. Em pouco tempo encontrou quem lhe comprasse toda a sua mercadoria e o animal. Apresentou-se então ao clérigo encarregado da igreja e entregou-lhe a importância que conseguira. Este procedimento, evidentemente, não podia ser do agrado de seu pai, além do que, o velho mercador se sentia humilhado pela atitude de seu filho que considerava extravagante. 
                     Um dia Francisco chegou em casa pálido, extenuado, mal vestido, sujo, desgrenhado e ensanguentado. Os garotos da rua e malandros, rodearam-no dizendo: 
                     - Ei! Bernadone!... Olha seu filho, formoso cavaleiro, que acaba de chegar  depois de conquistar uma princesa. 
                    Envergonhado e enraivecido, o velho mercador trancou-o num sótão escuro, no qual permaneceu até que sua mão o soltou, na ausência de seu pai, naturalmente. 
                     Depois do episódio da venda em Foligno, já não era mais possível, para seu pai, tolerá-lo. Pedro Bernadone, dirigiu-se à casa episcopal, queixando-se de seu filho e pedindo a restituição de seu dinheiro.  Nessa ocasião, pai e filho compareceram diante da primeira autoridade religiosa da cidade. O jovem ouviu a queixa do seu pai, e depois - maravilha única no mundo - retirando-se para um lado, desfez-se de sua preciosa roupa escarlate, sereno e com os olhos brilhantes, levando apenas uma faixa na cintura, voltou dizendo: 
                     - Até agora chamei pai a Pedro Bernadone, mas neste momento entrego-lhe todo o dinheiro e roupas que dele tinha; assim, de hoje em diante não terei mais de dizer: pai Pedro Bernadone! e sim Pai nosso que estai nos céus! 
                     Em seguida saiu do palácio, coberto com um mísero tabardo (casaco medieval) do jardineiro do bispo. 
                     Começa então uma vida nova para o magnânimo mancebo.  Está finalmente convencido de que a dama de seus pensamentos  não pode ser outra coisa além da pobreza.  Com ela passa a viver nas cavernas e no deserto, e dali é que sai para fazer seus sermões pelas vilas e aldeias de um pregador da penitência, da paz, e da simplicidade e pobreza em Cristo. 
                    - Quem vem lá? - perguntam-lhe uns ladrões. 
                    - O arauto do grande rei! - responde ele. 
                    Um dia, no início do século 13, enquanto toda a cristandade gemia, sofrendo com o escandaloso espetáculo da Quarta Cruzada, na qual o demônio das riquezas e da ambição desviara completamente  de sua finalidade os cavaleiros que tinham sido armados para libertar o sepulcro de Cristo, Francisco percebeu com mais clareza seu destino ao ouvir, durante a missa, aquelas palavras do salvador que dizem: "Não tenhais nem ouro nem prata em vossos bolsos, nem saco para a viagem, nem sandálias, nem bastão". "Isso é o que desejo com todas as minhas forças" - exclamou. Desde então levou ao pé da letra  este preceito à prática, percorrendo povoados e cidades, sempre radiante de alegria, vestido com uma túnica de pesado tecido cinzento, com uma corda como cinturão. 
                     Entre 1208 e 1209, fundou a famosa ordem mendicante. A ordem feminina correspondente é a das Irmãs  Claras. Finalmente uma terceira ordem, os Terceiros, ou Irmãos da Penitência, destinada àqueles sem vocação para uma vida exclusivamente religiosa. Visitou a Espanha, a Turquia e a Terra Santa, sempre pregando o Evangélio da pobreza. Morreu em 1226. 
                      

                      Como São Francisco recebeu o conselho de Santa Clara e do Santo Frei Silvestre, para que fosse pregar e converter o povo; e criou a Ordem Terceira e pregou às aves e fez calar as andorinhas. 
                    Aquele humilde servo de Jesus Cristo, São Francisco, pouco depois de sua conversão, tendo já reunido muitos companheiros e tendo-os recebido na Ordem, caiu em profundo pensamento e em graves dúvidas sobre o que devia Fazer;  se deveria dedicar-se inteiramente à oração, ou se deveria às vezes pregar; e neste assunto muito desejava conhecer a vontade de Deus. E por quanto a humildade que nele havia, não o deixava confiar só em si mesmo e nas suas orações; tentou saber a vontade divina por intermédio das orações de outros; Por isso chamou Frei Máximo e lhe disse: 
                     - Ide ter com a irmã Clara e dizei-lhe que, com as suas companheiras mais espirituais, devotamente rogue a Deus que me revele se é melhor que eu me dedique a pregar, ou apenas a orar. E ide depois com Frei Silvestre e dizei-lhe as mesmas palavras. 

                    Este era aquele Mestre Silvestre que vira sair da boca de S.Francisco uma cruz de ouro, que era tão alta como os céus e tão larga como os confins da terra. E tais eram a devoção e a santidade deste Frei Silvestre, que tudo que pedia a Deus lhe era dado, e muitas vezes falou com Deus: e, contudo, também São Francisco tinha grande devoção. 
                    Frei Máximo pôs-se a caminho, e, segundo mandara São Francisco, foi ter primeiro com Santa Clara e depois com Frei Silvestre; o qual, assim que o ouviu, imediatamente se pôs a rezar, e, rezando, ouviu a voz divina, e virando-se para Frei Máximo, lhe disse: 
                   - Assim diz o Senhor e o repetireis a São Francisco: que Deus não o chamou a este estado só por sua causa, mas para que possa fazer colheita de almas e salvarem-se muitos por intermédio dele. 
                  Com esta resposta voltou Frei Máximo para junto de  Santa Clara, para saber o que Deus lhe dissera. E ela respondeu que tanto ela como as companheiras haviam recebido de Deus resposta igual à que Frei Silvestre recebera.  Com isto voltou Frei Máximo para junto de São Francisco;  e São Francisco recebeu-o com o maior afeto, lavando-lhe  os pés e pondo a mesa para ele jantar. E depois dele comer, São Francisco  levou Frei Máximo para o bosque denso, e ali ajoelhou diante dele, e encobrindo o rosto com o capuz, cruzou os braços e perguntou-lhe: 
                  - Que manda o meu Senhor e Mestre, Jesus Cristo, que eu faça? 
                  Frei Máximo respondeu: 
                  - Tanto a Frei Silvestre, como à irmã Clara e às suas irmãs, Cristo respondeu e tornou claro que deveis ir pregar pelo mundo; porquanto não o chamou por vossa causa somente, mas também por causa da salvação dos outros. 

                   E então São Francisco, tendo ouvido esta resposta e por ela sabendo a vontade de Jesus Cristo, levantou-se com o maior fervor, dizendo: 
                   - Ponhamo-nos a caminho, em nome de Deus.
                   E tomou por companheiros Frei Máximo e Frei André, ambos eles homens de santa vida; e saindo a caminho, cheios das coisas do espírito, sem pensar na estrada ou direção que tomavam, chegaram a um castelo que se chama Savurniano, e São Francisco começou a pregar; e 
primeiro mandou as andorinhas, que estavam a cantar, que se calasse enquanto ele pregava; e as andorinhas obedeceram; ele pregou ali com tal fervor que toda a gente naquele castelo o queria seguir por devoção e abandonar o castelo; o que São Francisco lhes proibiu, dizendo: 
                    - Não tenhais pressa e não partais, que eu mandarei tudo o que tendes a fazer para a salvação das vossas almas. 
                    E foi nessa ocasião que criou a Ordem Terceira, para a universal salvação de todos os homens; e tendo deixado muitos consolados e dispostos à penitência, saiu dali e dirigiu-se para Cannajo e Bevagno. E indo no seu caminho com o mesmo fervor, ergueu os olhos e viu certas árvores à beira da estrada, onde havia uma infinita multidão de aves; do que São Francisco muito se admirou, e disse aos seus companheiros: 
                    - Esperai-me aqui na estrada, que vou pregar às minhas irmãs as aves. 
                    E entrou no campo e começou a pregar às aves que estavam no chão; e de repente as que estavam nas árvores desceram, e quantas ali estavam se conservaram silenciosas enquanto São Francisco lhes pregou; e mesmo assim não se retiraram antes de ele lhes ter dado a sua bênção.  E conforme depois contou Frei Máximo a Frei  Jaime de Maffa, São Francisco, passando entre elas, tocou-lhes com a capa, mas nenhuma se moveu.  A súmula do sermão de São Francisco foi esta: 
                    - Minhas irmãs aves, muito deveis a Deus vosso  criador, e sempre e em toda a parte é vosso dever louvá-lo, por quanto vos deu liberdade para em toda a parte voardes;  e também vos deu vestes duplas e quase triplas; porque conservou a vossa semente na arca de Noé, para que vossa raça nunca se extinguisse. Também lhes deve gratidão pelo elemento do ar, que ele vos destinou; mais ainda, vós não semeais nem colheis; e Deus vos alimenta e vos dá rios e fontes para matar a vossa sede; dá-vos montanhas e vale para vosso refúgio; árvores altas onde construir os vossos ninhos; e não fiais nem teceis, senão que vos vestiu Deus, a vós e a vossos filhos; por isso deveis amar muito o vosso Criador, que vos dá tão grandes benefícios; e cuidai portanto,  irmãs, em não cair no pecado da ingratidão, e fazer sempre por louvar a Deus.
                    Dizendo-lhe isto, São Francisco, quantas aves ali estavam começaram abrir os bicos e a estender os pescoços e a abrir as asas e a inclinar as cabeças reverentemente para o chão, e pelos seus atos e cantos  a mostrar que o Santo lhes causava a maior alegria; e São Francisco com elas se regozijou  grato e maravilhado de ver tão grande  multidão de aves, e a beleza da sua variedade, e a sua familiaridade e atenção; por isto tudo louvou devotadamente o Criador. 
                    Finalmente, acabado o seu sermão, São Francisco fez o sinal da cruz e mandou-as partir; e então todas elas subiram ao ar com cantos maravilhosos; e depois, consoante a cruz que São Francisco lhes fizera, dividiram-se em quatro bandos; e um foi para leste, e outro para oeste, e outro para  o sul, e outro para o norte, e cada bando, ao afastar-se, ia cantando cantos de maravilhar; significando por isto como São Francisco, mensageiro da cruz de Cristo, lhes tinha vindo pregar, e as tinha abençoado com o sinal da cruz, segundo o qual ela se tinham espalhado pelos quatro pontos do mundo. Assim foi a pregação da cruz de Cristo renovada por São Francisco, levada por ele e por seus irmãos a todo o mundo; os quais irmãos,  assim como as aves, não possuíam nada de bens deste mundo, mas entregavam a sua vida unicamente à providência divina. 

                   Esta narração - fábula - da pregação de São Francisco para os animais - nos mostra que precisamos de muito pouco para viver feliz; que de nada vale o acumulo de bens materiais terrenos; que apenas precisamos amar todos que encontramos pelo caminho. O Papa Francisco, que ainda está entre nós, disse: "Não tenho ouro nem prata, mas trago o que de mais precioso possuo, Jesus Cristo." Ele nos deu a mensagem da simplicidade, para que não caiamos nas garras da ganância e da vaidade.
Nicéas Romeo Zanchett
                   .
                                                  A CONVERSÃO DO LOBO FEROZ 
                  "Do altíssimo milagre que operou São Francisco quando converteu, em Gubbio, o lobo ferocíssimo."  
                  No tempo em que São Francisco morava na cidade de  Gubbio, apareceu naquela região um lobo muito grande, terrível, e ferocíssimo, o qual devorara, não só animais, mas também homens; e por isso todos os cidadãos daquele lugar viviam em grande terror dele; porque muitas vezes vinha até muito perto da cidade; e ninguém que o encontrasse a sós se podia de modo algum defender.  E tão grande era o terror deste lobo, que ninguém ousava sair  para o campo.  Por isso São Francisco, compadecendo-se dos homens daquela terra, desejou ir ter com esse lobo, - ainda que todos os cidadãos quisessem dissuadi-lo - e fazendo o sinal da santíssima cruz, saiu para o campo, ele e os seus companheiros, pondo toda a sua confiança em Deus. E os outros, duvidando se deviam prosseguir, São Francisco foi sozinho para o lugar onde estava o lobo. E eis que, vendo tantos cidadãos, que tinham vindo acompanhar o milagre, o tal lobo veio ao encontro de São Francisco com a boca aberta; e ao aproximar-se dele, São Francisco fez o sinal da cruz, e chamou por ele dizendo: 
                   - Vinde cá, irmão lobo; eu vos ordeno em nome de Jesus Cristo, que não façais mal nenhum, nem a mim nem a outro homem qualquer.
                   Maravilhoso de contar! Mal São Francisco tinha feito o sinal da Cruz, o terrível lobo fechou a boca e deixou de correr; e ouvindo outra ordem, veio mansamente como qualquer cordeiro e deitou-se aos pés de São Francisco. E então São Francisco dirigiu-lhe a palavra, dizendo: 
                   - Irmão lobo, sois muito daninho nesta terra, e tendes feito grande mal, matando e devorando as criaturas de Deus sem a sua soberana permissão. E não só tendes morto e devorado animais, mas tendes ousado matar homens, feitos à imagem de Deus; pelo qual sois digno da forca, como qualquer ladrão ou traiçoeiro assassino; e toda a gente grita e fala contra vós, e todos desta terra vos são contrários. Mas quero irmão lobo, fazer as pazes entre vós e eles para que não os ofendais mais, e eles vos perdoarão o mal que tendes feito, e nem homens nem cães vos tornarão a perseguir. 
                   Ditas esta palavras, mostrou o lobo pelos movimentos do corpo, da cauda e dos olhos, e pelo abaixar da cabeça, que aceitava o que São Francisco dissera e desejava  observá-lo. Então São Francisco lhe tornou:
                   - Irmão lobo, visto que vos apraz fazer e manter estas pazes, eu vos prometo que cuidarei em que vos seja dado de comer, enquanto viverdes, pelos homens desta terra, de modo que não sofrais fome; porque eu bem sei que foi a fome que causou todo os vossos crimes. Mas visto que eu vos obtenho este favor, exijo, irmão lobo, que me prometais nunca mais tornar a fazer mal a nenhum homem e a nenhum animal.  Prometeis? 
                  E o lobo, abaixando a cabeça, deu sinal evidente de que assim prometia. 
                  E são Francisco disse mais:
                  - Irmão lobo, desejo que me dês uma garantia da vossa promessa, ainda que tenha toda a fé na vossa lealdade.
                  E tendo São Francisco estendido a mão, o lobo levantou a pata direita e colocou-a sem receio na mão de São Francisco, dando-lhe assim, conforme pôde, uma garantia da sua boa fé.  E então disse São Francisco:
                  - Irmão lobo, eu vos convido em nome de Jesus Cristo que me sigas sem duvidar, e iremos concluir esta paz em nome de Deus. 
                  O lobo obedientemente o seguiu, como um cordeiro, de modo que os cidadãos, vendo isto, ficaram muito admirados. E em pouco tempo a notícia espalhou-se por toda a cidade, de modo que o povo, homens e mulheres, grandes e pequenos, novos e velhos, se apinharam na praça a ver o lobo com São Francisco.  E estando ali todos reunidos, levantou-se São Francisco e começou a pregar-lhes, dizendo entre outas coisas: 
                  - Porquanto, por vossos pecados, permitiu Deus varias coisas más e pestes, e muito mais perigosas, como são as chamas do inferno, que duram eternamente para os condenados, as quais todas são piores do que a ferocidade do lobo, que só pode matar o corpo; ora, deviam mais temer a boca do inferno, do que a boca dum pequeno animal que consegue amedrontar e alarmar tão grande multidão! 

     "Aqui, São Francisco estava se referindo à grande peste que se abatia sobre a humanidade, que na época a Igreja considerava tratar-se de um castigo de Deus pelos pecados cometidos."

                  Virai-vos, pois, amados irmãos, para Deus, e arrependei-vos sinceramente dos vossos pecados, que Deus vos livrará do lobo no presente, e do fogo do inferno no futuro. 
                   E tendo pregando, São Francisco disse: 
                   - Escutai, irmãos: o irmão lobo, que aqui está diante de vós, prometeu-me e deu-me uma garantia de sua boa fé que fará as pazes convosco e nunca mais vos ofenderá em qualquer coisa que seja; e deveis prometer que de hoje  em diante lhe dareis tudo o que lhe é preciso, que eu ficarei seu fiador, para garantir que ele cumprirá rigorosamente a sua paz. 
                   Então todo o povo, a uma só voz, prometeu dar-lhe sempre de comer. E São Francisco, diante deles todos, disse ao lobo: 
                   E vós, irmão lobo, prometeis guardar a paz para com este povo, e não tornar a molestar homens, animais e quaisquer outras criaturas? 
                    E o lobo, ajoelhando-se diante dele, baixou a cabeça e com movimentos de submissão, do corpo, cauda e orelhas, mostrou conforme pode que cumpriria todas as suas promessas. 
                    São Francisco disse: 
                    - Irmão lobo, quero que assim como me destes uma garantia dessa vossa promessa, aqui diante dese povo me deis uma garantia de vossa boa fé e que não traireis  a minha promessa e a garantia que dei por vós. 
                     Então o lobo, levantando a pata direita, colocou-a na mão de São Francisco. Ao ver isto houve tal regozijo e admiração entre o povo, e todos começaram a gritar aos céus, louvando a deus por lhe ter mandado São francisco, que por suas grandes virtudes os tinha livrado da boca daquela fera. E depois, o tal lobo viveu dois anos em Gubbio, entrando mansamente em todas as casas , indo de porta em porta, não fazendo mal a ninguém que também não lhe faziam mal algum. Era muito bem alimentado pelo povo; e andando assim pela terra e de porta em porta, não havia cão nenhum que lhe ladrasse. Por fim, passados dois anos, o irmão lobo morreu de velho; e os cidadãos choraram muito, por quanto, vendo-o andar tão mansamente pela cidade, sempre lhes lembrava a virtude e a santidade de São Francisco.

                   Esta fábula da idade  media, foi contada de geração em geração até os nossos dias. Com ela, São Francisco quis mostrar a todos que o lobo, já velho e sem poder caçar como antes, atacava animais domésticos e pessoas pelo simples instinto de sobrevivência. Ainda hoje vemos pessoas indo cumprir pena na cadeia por ter furtado um litro de leite no supermercado para alimentar seu filho; e, ao mesmo tempo, assistimos a corrupção política roubando impunemente. É essa a grande causa de impostos exageradamente altos que, especialmente no Brasil, pagamos para garantir a mordomia dos políticos e seus apadrinhados.
                   É oportuno lembrar que todos pagamos, pobres e ricos. Quando compramos um simples litro de leite, no seu preço vem embutido uma enorme parcela que vai para o governo. Deveria ser utilizada  em benefício de todos, mas a má gestão do dinheiro público e a corrupção são as feras que nos devoram. 
                    Hoje, 28 de julho de 2013, estamos nos despedindo do Papa Francisco. Durante toda a semana que conosco esteve, ele nos alertou, especialmente os jovens, a nunca desistir de lutar pelos nossos direitos. 
                   O Brasil é um país rico, mas a verdade é que seu povo, em sua grande maioria, é pobre. Mas os políticos fazem uma grande propaganda enganosa para convencer a todos que está erradicando a pobreza e a miséria. É uma grande mentira. Os jovens de hoje terão de enfrentar o grande problema do desemprego, das drogas, da violência, dos maus serviços públicos; e a fome ronda a mesa dos brasileiros. Além dos impostos extorsivos, teremos de conviver com inflação alta e corrupção. A mensagem do Papa Francisco foi bem clara: "não desistam". 
Nicéas Romeo Zanchett


FRASES DO PAPA FRANCISCO 
"A juventude é a janela pela qual o futuro entra no mundo."
"Não tenho ouro nem prata. Mas trago o que de mais precioso me foi dado. Jesus Cristo".
"Cristo bota fé nos jovens!"
"Bote fé, que a vida terá um novo sabor, bote fé, bote a esperança e bote amor."
"Energia alguma é mais potente do que a que sai do coração dos jovens."
"Não se cansem de trabalhar por um mundo mais justo e solidário". 
"Os jovens tem que sair e se valer, sair a lutar pelos seus valores."
"Peço um favor, com jeitinho, rezem por mim."
"Não há esforço de pacificação duradouro com uma sociedade que abandona parte de si mesma."
"Como diz o ditado, sempre se pode colocar mais água no feijão."
"A verdadeira riqueza não está nas coisas, mas no coração."
"Tudo aquilo que se compartilha, se multiplica."
"A violência só pode ser vencida a partir da mudança do coração humano."
"Quero que saiam fora. Quero que a Igreja saia às ruas."
"Gostaria que minha passagem pelo Rio renovasse a fé de todos em Cristo e na Igreja."